sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Colocando a dor para dormir

Ela se impõe. Toma espaço psíquico, monopoliza atenções. O escritor francês Paul Valéry, morto há 70 anos, escreveu que a dor física nos coloca em oposição a nós mesmos. De certa forma sim, já que evoca a sensação de estranheza numa seara que há muito parecia familiar. Antes, porém, a sensação dolorosa nos lembra de algo que, não raro, permanece no limiar do esquecimento, a despeito da obviedade: temos um corpo. E nele, a dor cria uma geografia própria, destaca recantos, entranhas; faz emergir superfícies e contornos. Limita gestos, impele contorções, tremores e espasmos como se uma música surda levasse a expressões que não podem ser circunscritas pela elaboração psíquica e só encontram saída naquilo que  prima pela urgência, pelo reconhecimento e pede cuidado. É como se o Real repentinamente nos tocasse na mais densa de suas manifestações.


Curiosamente, a dor não está no membro ferido, como nosso imaginário nos leva a crer – mas no cérebro. E embora no domínio da neurofisiologia, as repercussões da experiência dolorosa se desdobram. Simbolicamente, formamos sua representação mental do que lateja, queima, transpassa, pesa e agride. O que aflige o corpo também inunda a alma. Mas algo há que ser dito em sua defesa: diante do perigo iminente (interno ou externo), funciona como o mais eficiente e cruel dos alarmes. O problema surge quando esses sinais internos se descontrolam e já não silenciam.
Para milhões de pessoas em todo o mundo – que exatamente neste instante sofrem com a dor crônica – as agruras dessa sensação ora estão mais intensas, ora menos, mas sempre se fazem presentes, como parte dos dias e das noites de homens e principalmente mulheres, já que são elas as que mais sofrem. Às vezes é possível enganar esse sofrimento, mas como diz um amigo querido que ao longo dos anos tem aprendido a conviver com as armadilhas da dor que não passa, “ela está ali, à espreita, às vezes dorme, mas se ficamos em silêncio podemos ouvi-la ressonar”. O pior dessa constatação triste, apresentada em palavras delicadas de poeta, é que a qualquer momento a dor de fato pode acordar – forte, intensa, assustadora, como se jamais fosse cochilar de novo.
Para fazê-la dormir profundamente, em todo o mundo pesquisadores se empenham em encontrar medicações eficientes, com a menor quantidade possível de efeitos colaterais. Nesta edição, três textos mostram o quanto esse caminho é complexo e, em geral, é bem mais lento do que gostaríamos. E depositar todas as fichas numa única cesta (que, neste caso, ainda está sendo trançada pelos cientistas) pode ser especialmente angustiante. Nesse contexto, a psicoterapia mostra-se fundamental, não apenas para reconhecer os sentidos que a dor adquire, mas também para encontrar formas criativas de lidar com ela. Intervenções combinadas como massagem, meditação, acupuntura, atividade física e mesmo o convívio afetuoso em grupo, bem como o acesso a informações de qualidade, também têm se mostrado bastante eficazes para que pessoas de variadas idades e com diversos quadros clínicos encontrem alívio na batalha contra a dor que parece não ter fim.

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