quinta-feira, 11 de junho de 2015

A matemática das meninas e dos meninos


Por conta de socialização distinta e de preconceitos alimentados na própria escola, a proporção de alunas que chegam ao final do Ensino Médio com desempenho adequado em Matemática é menor do que a de meninos

A matemática das meninas e dos meninos
João Bittar/MEC



Pricilla Honorato

Um levantamento do Movimento Todos pela Educação (TPE), com base em dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), revela que, em 2013, apenas 7,2% das meninas terminaram o Ensino Médio com desempenho adequado em matemática. Para os meninos, o índice foi de 12,7%; uma diferença de 5,5 pontos percentuais. Essa distância vem caindo. Em 2011, era de 6,3 pontos. Mas a distinção de gêneros ainda é marcante e passa por questões internas e externas ao ambiente escolar.
 
 Porcentagem adequado em matemática - Saeb
 5º ano do EF*9º ano do EF3º do EM**
 MeninosMeninasMeninosMeninasMeninosMeninas
201138,835,819,614,914,17,8
201342,240,418,514,912,47,2
                             Fonte: MEC/Inep/Daeb - Saeb 2013/Elaboração Todos Pela Educação
                             *Ensino Fundamental
                             **Ensino Médio 
Para os especialistas e pesquisadores de Educação e gênero, um conjunto de fatores explicaria tais resultados. As hipóteses vão desde trajetórias escolares distintas até a binarização dos gêneros na sociedade. Marília Carvalho, professora da Faculdade de Educação da USP, afirma que as diferenças entre meninos e meninas, embora existam, podem ser menores do que os números sugerem.

Como os meninos têm maior taxa de abandono escolar ao longo dos Anos Finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, explica a educadora, participariam da avaliação do Saeb meninos involuntariamente pré-selecionados, o que influenciaria – em algum nível – os índices. Marília admite, entretanto, que existe diferença entre o desempenho de meninos e meninas devido a fatores historicamente construídos – “não biológicos”, sublinha – e que esse é um fenômeno observável em diversos países.

Um levantamento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com base nos dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (em inglês, Pisa), comprova a hipótese. O estudo – que abarca 34 países – aponta que meninas sentem-se mais inseguras frente a formulações matemáticas e, por isso, são mais suscetíveis a erros. De acordo com o estudo, os meninos brasileiros ficaram 20 pontos à frente de meninas na pontuação total do teste de matemática.
“As meninas têm essa autopunição quando erram. Há por trás a culpa feminina. A mãe se sente sempre culpada, a mulher se sente sempre culpada, como no estupro, por exemplo”, afirma Gicele Sucupira, historiadora e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Lindamir Casagrande, professora de matemática, doutora em Tecnologia e Sociedade e pesquisadora na área de Educação e gênero da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), destaca que o modo como se ensina matemática também pode determinar a aproximação ou o afastamento dos alunos da matemática.
Nascida em Céu Azul, no interior do Paraná, Lindamir cresceu em um ambiente onde saber matemática era normal, onde todos se davam bem com as contas; e, portanto, envolver-se com a disciplina foi natural para ela . A proximidade com os números determinou a carreira por ela escolhida. Para a educadora, quando o professor ou os familiares tratam a disciplina como algo “para poucos”, os alunos se afastam da matemática – com medo –, em vez de se empenharem. Isso seria ainda mais danoso para meninas, cuja insegurança é maior. 
De menino e de menina
A concepção dos papéis sociais tidos como de menino e de menina não está restrita à escola, esclarece Gicele. A antropóloga destaca que a binarização dos gêneros reverbera na escola por meio dos conteúdos das avaliações internas e externas. Segundo ela, os testes, em suas questões, priorizam temas tidos como masculinos. Por exemplo, referências a bolas e a carros. Além disso, a separação entre o que é de menino e o que é de menina também está presente na sala de aula. Em conjunto, essas influências direcionam os projetos das crianças ao longo da trajetória escolar e, posteriormente, na escolha da carreira profissional a seguir. “Todo ensino escolar está associado a uma expectativa de projeto de vida familiar. Profissões consideradas perigosas, por exemplo, ainda são muito mais vistas como parte do projeto de vida dos meninos”, pondera.
Esses papéis sociais são historicamente construídos, explica Gicele, e se traduzem em pequenas ações diárias, nem sempre conscientes. Em 2007, a antropóloga pesquisou sobre a participação de meninos e meninas nas Olimpíadas Brasileiras de Matemática (OBM), em Florianópolis, e observou comportamentos ligados ao gênero. “Enquanto os meninos podiam circular livremente, por exemplo, para as meninas havia restrição. As famílias alertavam-nas que elas deveriam tomar mais cuidado”, explica. Ela também notou reações diferentes de meninos e de meninas diante dos erros: elas sofriam mais.
O padrão de participação das meninas ao longo das etapas da OBM e também das Olimpíadas Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep) reproduz um quadro semelhante ao da Educação Básica. Nessas competições, os alunos são classificados em três níveis, conforme a etapa escolar em que estão matriculados. As meninas são competitivas no nível I e vão desaparecendo ao longo dos níveis II e III. “O nível I recebe participantes do 1º ciclo do Ensino Fundamental; o nível II, do 2º ciclo dessa etapa e o nível III, do Ensino Médio.”, compara Gicele (confira a pesquisa aqui)

Esse cenário se repetiu nas premiações com medalhas de ouro e de prata nas últimas três edições da Obmep (2012, 2013 e 2014): no primeiro nível, as meninas representavam uma média de 26% dos participantes; em contrapartida, no terceiro nível, esse índice caiu para uma média de 12,4% “Muitas vezes participar de olimpíadas de matemática está mais ligado ao projeto de vida de meninos, do que de meninas”, pontua
Gicele.  
Para a professora Lindamir, o afastamento das meninas da matemática e das carreiras de exatas passa pela naturalização do (pre)conceito de que haveria habilidades próprias de meninos e de meninas. “O menino não se sai bem em português e em redação e está tudo bem, já a menina que sabe matemática causa espanto. Ora, tanto meninas quanto meninos precisam saber matemática e se comunicar”.
Carrinhos, bonecas e livros
Além dos atores familiares e escolares, os livros didáticos e os brinquedos também associam a figura feminina a padrões que as afastam ou as aproximam de determinadas atividades.
Ainda na infância, a menina é tratada de modo diferente, afirma Hildete Pereira de Melo, economista, pesquisadora na área de gênero e ciência e professora doutora da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Enquanto elas ganham bonecas, que não podem quebrar, os meninos ganham carros e aviões os quais podem desconstruir e descobrir como cola”, explica. “Assume-se que a cabeça do homem é de exatas; e a mulher é ensinada a ter preocupações com o bem-estar”.
Marcia Barbosa, física, pesquisadora e professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ganhadora do Prêmio L'Oréal-Unesco para Mulheres na Ciência 2013, conta que desde cedo “mexia nas coisas para ver como elas funcionavam” e que isso determinou o interesse que tem pela ciência. Para ela, é necessário quebrar estereótipos de gênero ainda na infância. “As meninas podem se arriscar, se machucar, levar choque, experimentar e isso não as deixam menos nada”, defende. 
O livro didático, ferramenta fundamental do ensino, por meio de ilustrações e/ou sentenças estabelece associações sobre o que mulheres e homens são e o que devem fazer. Lindamir analisou livros de matemática e constatou ausência de figuras femininas em altos cargos. “As mulheres aparecem como costureiras, cozinheiras, artesãs, mães; e, claro, para essas ocupações, só é preciso matemática elementar”. Para a pesquisadora, o material passa a mensagem de que aqueles são os papéis reservados às mulheres. “Falta representação para que essas crianças possam sonhar”, lamenta.
Diversidade de metodologias
Para a antropóloga Gicele, é preciso combater, ainda na Educação Básica, a ideia de que a matemática exige uma inteligência superior. “Subentende-se que alguém que sabe matemática é mais inteligente e vice-versa. Isso causa certo pavor: ‘melhor nem chegar perto para não passar por essa frustração’”. Uma frustração que atinge, sobretudo, as meninas. 
Atitudes que reforcem a autoconfiança das meninas podem surtir efeito. O estudo da OCDE aponta que quando se comparam os meninos e as meninas que relataram níveis semelhantes de autocon¬fiança e de ansiedade em relação à matemática, a diferença de gênero em desempenho diminui. 
Fomentar o interesse pelas ciências, afirma a economista Hildete Pereira, é algo que pode ocorrer por meio de políticas públicas específicas para a área. “Sem isso, a sociedade não muda, continuará educando meninas de um jeito e meninos de outro”.
Gicele acrescenta que alcançar a igualdade entre os gêneros no desempenho escolar passa fundamentalmente por mudanças na metodologia de ensino, cuja figura central é o professor. “Tem que começar desde a formação dos docentes. A loucura da rotina do professor o impossibilita de pensar em novas metodologias. O aluno não está aprendendo e o docente, em vez de tentar outro caminho, acha que é por falta de interesse”, explica. “A matemática tem que dialogar com o contexto de significados da vida do aluno. Para isso, é preciso que não se restrinjam os exemplos em classe ao universo tido como masculino”, explica.
Lindamir também acredita em mudanças dentro das salas de aula. Ela critica a insistência de alguns docentes em destacar a dificuldade dos conteúdos matemáticos e revela como trabalha em classe. “Eu digo pros meus alunos: ‘a gente vai acrescentar uma vírgula por dia. Se você entendeu isso aqui, o próximo assunto será uma coisinha a mais’”. Afirmar que a disciplina é mais difícil do que outras desencoraja os alunos, completa.

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