quarta-feira, 25 de março de 2015

Tráfico: enxugando gelo


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O réu, que se encontra preso preventivamente há meses (motivo: garantia da ordem pública), sem nunca sequer ter sido ouvido, entra na sala algemado, com as mãos para trás, odor fétido de quem há dias não se asseia, roupas velhas e com alguns rasgos, escoltado por dois policiais civis, senta no “banco do réu”, cabeça baixa, trêmulo do frio do ar-condicionado (não está vestindo terno quentinho), atônito por toda aquela estrutura imponente que o recebe, voz embargada e tímida, cumprimenta:
Mais uma audiência hoje. Estavam lá o juiz, o promotor e o defensor público. O secretário faz o pregão. Instrução de mais um processo. Processo criminal. Delito? Pois é, tráfico de drogas. Rápido, porque a pauta tá cheia!
- Bom dia, doutor. Diz o réu com dúvida se é esse mesmo o tratamento, já que nunca teve educação formal, esperando algum sorriso ou afabilidade que o deixe mais à vontade naquele ambiente.
- Bom dia. Dizem os agentes da Justiça, ao folhearem os autos do processo, sem sequer olhar pra quem os cumprimentou.
Começa a audiência, entra a primeira testemunha de acusação. Um policial (?!!!), que conta como foi sua atuação, a forma que encontraram o réu e a droga, embalada em diversos papelotes, balança de precisão e algum trocado. Conta de forma genérica sua atuação, pois já não lembra dos detalhes, já que depôs em outros cem casos cuja atuação foi similar. Responde evasivo às perguntas do promotor e do defensor.
- Atuei dentro da legalidade, ele estava com a droga: era traficante, certeza!
- O senhor o viu vendendo a droga? Pergunto.
- Não, não vi, mas ele já é conhecido de todos. Todo mundo sabe que ele é traficante.
- Ok, depoimento completo, assine aqui e está liberado. Diz o secretário.
Entra a segunda testemunha na sala: outro policial. Outro policial? Outro policial.
- Tem como eu dar uma lida no que eu falei na época do inquérito, não lembro direito... (Lê)... Ah, lembrei!
Conta a mesma história que a primeira testemunha, de forma genérica e procedimental. Responde às perguntas formuladas por todos, tentando minudenciar o fato, mas sem sucesso.
Mais alguma testemunha? Não, só os dois policiais mesmo.
Como testemunharem se eles mesmo já efetuam a prisão e o procedimento do flagrante? Vão mesmo dizer que a conduta deles foi equivocada e que o réu não é traficante. Vão mesmo dizer que implantaram a droga ou que o réu apenas estava usando. Vão mesmo dizer que o réu estava em sua casa tranquilo. Vão mesmo dizer que o torturaram e o deixaram preso por dias a fio antes de tomar alguma providência.
Mas, são testemunhas, o juízo já indeferiu a arguição de suspeição. Diz: se os policiais não testemunharem, quem vai testemunhar?
Sem testemunhas de defesa.
- Sente-se aqui. Diz o secretário ao réu, apontando-lhe a cadeira para o interrogatório.
Câmera nele.
- Senhor, fale ao microfone para ficar gravado o áudio.
Após a qualificação, o juiz pergunta:  - São verdadeiros os fatos imputados ao senhor na peça acusatória?
- Hã?
- É verdade que foi o senhor que cometeu o crime?
- Ah! Foi não senhor.
- Conte-nos sua versão, por favor.
O réu conta que realmente estava com as drogas, mas que não ia vende-las. Diz que estava com a droga para uso pessoal em sua casa quando os policiais entraram e a pegaram.
- Então o senhor é “só” usuário?
- Sim, senhor. Uso maconha e pedra, desde criança.
- E a balança de precisão, e o dinheiro?
- Não sei de quem são. Não são minhas, nunca tive isso daí.
- E esses outros processos que o senhor responde... são muitos...
- Não fui eu não, só tava lá quando os “homi” chegaram. Armaram pra mim.
O interrogatório termina. Para-se a gravação. Imprimem-se os termos.
- O senhor assina?
O réu mostra o polegar, como um sinal de que não sabe ler nem escrever. Retira-se apenas um lado das algemas, dedo na almofada, dedo no papel. Três vias.
Alegações finais orais. Promotor: tráfico. Defensor: usuário.
Conclusos para sentença: Na dúvida, melhor condenar. Não é a primeira vez que ele responde a um processo. A sociedade não vai gostar de mais um traficante na rua. Vão pensar: a polícia prende, a justiça solta.

Como dito, ninguém olhou para o réu enquanto ele depunha. Na verdade, ninguém nunca olhou para ele. Ninguém lhe perguntou sobre como era a sua vida, onde cresceu e quais as suas influências.
Ninguém olhou pro réu enquanto este depunha. Juiz, promotor e defensor público, todos enquanto perguntavam apenas olhavam para os autos do processo, procurando alguma inconsistência ou semelhança com o dito no inquérito.
Juiz, promotor, defensor público e a sociedade não sabem, não o conhecem. Não viram o seu sofrimento, quando criança, com pai e mãe traficantes. Pai morto quando ainda era criança, por inimigo que queria tomar a boca de fumo.
Cresceu sozinho, tendo que furtar (ou roubar) o que comer. Todos os “amigos” traficantes e usuários. Nunca foi à escola, nunca teve quem olhasse por ele.
Na adolescência foi internado, diversas vezes, por cometer “ato infracional”. Agora conseguiu crescer, comete crime. Muitas vidas viu serem ceifadas.
Mas ninguém perguntou isso, ninguém quer saber.
- Mande logo concluso pra sentença, tem que entrar na produtividade do mês.
Enquanto o réu saía, o secretário apressava-se para chamar a próxima audiência. O crime? Tráfico. As testemunhas? Policiais.
Pauta cheia até o final do ano. E vão seguindo: Promotor fingindo que tá acusando, defensor fingindo que tá defendendo e juiz fingindo que tá condenando. Todos iludidos achando que estão contribuindo para uma sociedade melh


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