sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A política de descriminalização de drogas em Portugal

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The drug decriminalization policy in Portugal


Vera Lúcia Martins
Doutora em Serviço Social e professora adjunta do Colegiado de Curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Oeste do Paraná/Unioeste - Toledo/PR, Brasil. E-mail: vemartins_@hotmail.com



RESUMO
o texto procura apresentar uma análise da política de descriminalização das drogas em Portugal, apontando as principais mudanças ocorridas com a entrada em vigor da Lei n. 30/2000. Apresenta ainda argumentos do constitucionalista liberal norte-americano Gleen Greenwald em defesa da política portuguesa e do sucesso obtido por Portugal na era pós-descriminalização das drogas.
Palavras-chave: Drogas lícitas. Drogas ilícitas. Legalização das drogas. Descriminalização das drogas.

ABSTRACT
the aim of the text is to present an analysis of the drugs decriminalization policy in Portugal, pointing out the main changes that occurred since the Law N. 30/2000 is out. It also presents arguments of the liberal northern American Congressman Gleen Greenwald in defense of the Portuguese policy and the Portuguese success obtained in the drugs post-decriminalization era.
Keywords: Legal drugs. Illicit drugs. Drugs legalization. Drugs decriminalization.




Introdução
Em tempos de uma intensa fragmentação da vida social ganha destaque nos meios de comunicação, a partir de uma leitura recortada da realidade social, a criminalização do uso de drogas, sobretudo as ilícitas.
Por certo que o uso abusivo de drogas tem implicações para o indivíduo, para a família e para a sociedade e, certamente, incide sobre as diversas profissões em suas áreas de intervenção, incluindo o Serviço Social.
Atuando sobre as expressões da questão social, entendida como o "conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura" (Iamamoto, 1999, p. 27), os profissionais assistentes sociais são demandados a "dar respostas" profissionais através das suas instituições empregadoras.
De uma perspectiva crítica, os profissionais assistentes sociais participam de relações sociais bastante conflituosas atuando, através da política social, na relação capital/trabalho. Esse atuar se verifica quando: 1) as respostas demandadas pelos usuários dos serviços institucionais, onde estão inseridos os profissionais assistentes sociais são, em sua grande maioria, respostas1 do Estado, cuja natureza é contraditória - o Estado, para se manter como poder político, há que organizar uma base de consenso que lhe permita administrar as expressões da "questão social": "que tem raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade" (Iamamoto, 1999, p. 27); 2) sob o capitalismo, sistema regido pela propriedade privada dos meios de produção, a política social "é uma maneira de expressar as relações sociais, cujas raízes se localizam no mundo da produção" (Vieira, 1992, p. 22).
Os assistentes sociais, intervindo sobre as expressões da questão social, haja vista que a dependência de drogas se relaciona, sobretudo, com o contexto socioeconômico, invariavelmente o fazem a partir de abordagens que, em geral, responsabilizam os indivíduos por sua condição de "dependente". Poucas são as abordagens com uma perspectiva de totalidade2, isto é, que consideram os indivíduos e as famílias inseridos numa sociedade contraditória e alienante3.
Nesse contexto, os serviços institucionais oferecidos a essa demanda são também individualizados e com uma perspectiva também focalizada nos indivíduos, na "sua" história de "vida", no "seu" problema ou na "sua" família.
Não se pretende aqui retirar a responsabilidade dos indivíduos por suas escolhas, mas é certo que os indivíduos fazem escolhas em condições determinadas. Em um contexto alienante, como é o modo de produção capitalista, aos indivíduos é dificultado viver suas vidas com liberdade e, frequentemente, vivem formas desumanizadoras que os desvinculam de uma realidade social em que sejam capazes de realizar-se plenamente.
A responsabilização pura e simples dos indivíduos por suas "escolhas" em usar ou não drogas pode encaminhar para uma discussão polêmica, qual seja, até que ponto os indivíduos são livres para fazerem as suas escolhas. Essa questão, embora não sendo o objeto e o objetivo do presente artigo, precisa ser tematizada.
A liberdade de escolha por certo não é uma abstração, mas no modo de produção capitalista essa liberdade é, em grande medida, determinada pelas condições materiais de existência dos indivíduos.
Entende-se que a liberdade "não é apenas um valor, um estado de perfeição absoluta" (Barroco, 2008, p. 26). Os indivíduos fazem as suas escolhas através de critérios objetivos validados pelo conhecimento, pela experiência, pela observação teórico-prática e pela existência de alternativas.
Em se tratando do uso e do abuso de drogas, é preciso dizer que em relação às drogas lícitas, considerando que estão inseridas no processo produtivo, e lucrativo, do chamado "mercado legal", movimentos condenatórios existem, mas os conflitos daí decorrentes podem ser resolvidos na esfera legal. Em relação às drogas ilícitas, considerando que são mercadorias e que precisam ser realizadas enquanto tais, por que a sua condenação?
A resposta simples e direta poderia ser: a condenação existe porque as drogas trazem prejuízos "irreparáveis" para os indivíduos e para a sociedade. Se a resposta fosse absolutamente verdadeira, nesse caso não seria mais prudente descriminalizá-las ou, no limite, legalizá-las tirando-as do rol de substâncias proibidas, submetendo-as ao controle do Estado no que diz respeito à sua qualidade e à condição de uso tal como é feito com as drogas lícitas?
Sabe-se que, para as drogas ilícitas, boa parte dos seus malefícios reside nas impurezas e na mistura de produtos altamente tóxicos e prejudiciais à saúde durante o seu processo de produção. Mas quanto às drogas lícitas também não se desconhece que podem causar danos aos indivíduos. A diferença é que sobre elas o Estado (e a sociedade) exerce o controle de qualidade nas esferas da produção e da circulação4.
A retirada das drogas da ilegalidade, colocando-as sob o controle do Estado, por meio da taxação de impostos e da qualidade dos produtos, não seria o caminho mais adequado, justo e economicamente viável para a sociedade? Afinal, esse é o recurso utilizado em relação às bebidas alcoólicas, ao tabaco e aos remédios. A quem interessa, então, manter na ilegalidade determinadas substâncias?
A resposta a essa questão não é simples e nem direta. Sinteticamente pode-se afirmar que a colocação das drogas na ilegalidade, e a sua condenação, responde a determinados interesses5 que no limite serve para a imposição de uma política de "tolerância zero", cuja liderança, que se pretende hegemônica para todos os países, tem sido encampada pelos Estados Unidos da América, no sentido da universalização de um discurso proibicionista e condenatório de todo e qualquer tipo de uso de drogas consideradas ilícitas.
Ocorre que na Europa, a partir de 1980, um número significativo de países começa a perceber que a política de "tolerância zero", de condenação das drogas, não estava alcançando os resultados esperados, tanto na repressão da produção quanto na circulação delas.
Essa percepção fez com que países-membros da União Europeia (UE) caminhassem "em direção a um maior equilíbrio entre repressão e proteção" (Jelsma, 2008, p.4), cujo sentido é manter o controle sobre o tráfico de drogas, mas descriminalizar as drogas e os seus usuários. O objetivo passa a ser a dissuasão do consumidor, com ênfase na proteção de sua saúde e no "bem-estar" da sociedade.
Na União Europeia, segundo Danilo Balotta6, há uma tendência, em relação às políticas de drogas, mais especificamente da cannabis, no sentido da sua não criminalização. Parece haver, em relação a essa droga, um distanciamento de políticas meramente repressivas e discriminatórias do seu usuário.
Na esteira do abrandamento de políticas repressivas, a União Europeia também caminha no sentido do alargamento da política de redução de danos, como indica o relatório European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction (EMCDDA):
Historicamente, o tema da redução de danos foi mais controverso. Uma realidade que se encontra em alteração, e a redução de danos, enquanto parte de um pacote detalhado de medidas de redução da procura, parece agora ter-se transformado numa vertente mais explícita da abordagem europeia. (EMCDDA, 2007, apud Dependências, 2009, p. 11)
Os dados do citado relatório mostram ainda que na União Europeia, em dez anos, medidas de redução de danos decuplicaram e, tanto os programas de substituição opiácea quanto os programas de troca de seringas abarcam praticamente todos os países membros da União Europeia.
Particularizando a análise para Portugal, esse país tem sido apontado como a única nação que efetivamente descriminalizou as drogas. Portugal opta pela política de descriminalização das drogas em 2000, após estudo realizado pela Comissão para a Estratégia Nacional de Combate à Droga, que considerou a medida como a mais viável, haja vista que a opção pela legalização contrariaria os tratados internacionais de que Portugal é signatário.
O objetivo, apontado pela Comissão em 1998, não era apenas "reduzir o abuso e o uso de drogas", mas também incentivar a busca voluntária, pelos usuários, pelo tratamento como "medida alternativa a sentenças de prisão".
Deve-se ressaltar que em Portugal o uso e a posse de drogas continuam proibidos - a regra permanece -, mas não há mais aprisionamento para o indivíduo usuário ou dependente. No lugar de sanções criminais aplicadas medidas administrativas como multas ou encaminhamento para tratamento.
Deve-se ressaltar também que é preciso evitar o equívoco de se confundir descriminalização com legalização. Portugal não legalizou o uso de drogas, da mesma forma que nenhum país membro da União Europeia o fez, porque legalizar "significa que não há nenhuma proibição de qualquer espécie na lei relativa à produção, venda, posse ou uso da droga" (OEDT, 2005, apud Dependências, 2009, p. 10).
Em Portugal o que ocorre é a descriminalização de todas as drogas, incluindo a cannabis, a cocaína e a heroína.
A estrutura jurídica adotada por alguns países da União Europeia difere da política implementada por Portugal porque em boa parte dos países europeus vigora a mera "despenalização" da droga, ou seja, "a relativização da sanção penal prevista pela lei. No caso das drogas, e da cannabis em particular, a despenalização significa geralmente a eliminação de sanções custodiais" (OEDT, 2005, apud Dependências, 2009, p. 10).
No regime da "despenalização" da droga, o consumo mantém-se como uma "ofensa criminal". Embora a prisão não seja imposta para a posse ou uso de drogas, as multas, os registros policiais e a liberdade condicionada permanecem como recursos disponíveis nessa estrutura jurídica.
No âmbito da lei que entrou em vigor em Portugal em 1º de julho de 2001, a mudança verificada diz respeito à descriminalização das drogas com repercussão no usuário, ou seja, a posse e o uso de drogas continuam proibidos, mas as consequências para o usuário, ao ser pego, referem-se a violações administrativas não mais tratadas no âmbito criminal.
Para além do acerto que Portugal obteve com a descriminalização das drogas, e do seu usuário, também é preciso ter claro que o peso dessa política recai na abordagem da saúde, exigindo do consumidor sua sujeição ao tratamento médico e, do Estado, políticas adequadas para atender à demanda dos que se dispõem ao tratamento.
Ademais, resta destacar que para a União Europeia, e particularmente para Portugal, a política de "guerra às drogas", que recai em criminalização do usuário e na sua colocação na clandestinidade, tem se mostrado mesmo fracassada. Na política de "tolerância zero" quem ganha são os capitalistas das drogas, que têm no comércio ilícito um meio altamente lucrativo para a realização de seus interesses econômicos.
Por outro lado, a política de "guerra às drogas", que patrocina investiduras militares, reforça a ideia de que os responsáveis pelo consumo de drogas, em nível mundial, são os países produtores e, nesse sentido, as invasões militares se justificam. Ocorre que essa mesma política de "guerra às drogas" não evidencia os interesses econômicos e políticos imbricados na questão.
Além disso, a política de "guerra às drogas" tem se mostrado desastrosa porque, ao promover a fumigação química de plantações, como as de coca, maconha e papoula, por exemplo, o resultado é um desastre ecológico para as terras cultiváveis localizadas próximas às áreas fumigadas, além da perseguição aos pequenos agricultores, que têm no cultivo da coca seu meio de subsistência, como é o caso daqueles situados nos países andinos.
No contexto de uma política repressiva - antidrogas -, a experiência realizada por Portugal pode ajudar a pensar a realidade brasileira, contribuindo com uma abordagem menos preconceituosa sobre a questão.

1. A mudança de paradigma em Portugal em relação aos usuários de drogas
A Lei n. 30/2000, aprovada em 19 de outubro de 2000 (promulgada em 14 de novembro de 2000 com entrada em vigor em 1º de julho de 2001) refere-se à política de descriminalização das drogas (artigo 1º). Sua ênfase recai sobre os usuários, eventuais ou crônicos, tendo em vista a sua proteção do ponto de vista social e da saúde.
O marco legal, anterior à referida lei, no âmbito do tráfico e do consumo de drogas, baseava-se no Decreto-lei n. 15/93, que ratificou a Convenção das Nações Unidas sobre o tráfico ilícito de drogas de 1988.
Da análise do Decreto-Lei n. 15/93, sobre a política de drogas em Portugal até o ano de 1993, destaca-se a definição da lei sobre o "consumo", entre outros, de coca, cannabis e seus derivados.
O consumo, conforme o artigo 40º do texto da lei portuguesa de 1993, era definido pelo uso de drogas propriamente dito, mas também pelo cultivo, aquisição ou retenção para consumo pessoal de plantas, substâncias ou preparos tidos como ilícitos (definidos nas Tabelas I a III, incluso a Tabela IV anexadas ao Decreto-lei n. 15/93). O consumidor enquadrado nessa condição era passível de punição com pena de prisão até três meses ou multa até trinta dias.7 No entanto, se a quantidade apreendida ultrapassasse a necessidade do seu consumo médio individual de três dias, a pena poderia ser aumentada até um ano ou multa até 120 dias.
Na legislação atual, Lei n. 30/2000, o consumo, a aquisição e a detenção de plantas, substâncias ou preparos indicados nas tabelas da referida lei são tratados como "contraordenação". A lei também prevê que a aquisição e a retenção para o consumo individual não pode exceder aquela quantidade considerada como "necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias" (Lei n. 30/2000, art. 2º, inciso 2). Nesse quesito a lei em vigor amplia de três para dez dias o período considerado para o consumo médio individual.
A inovação propriamente dita, com a entrada em vigor da Lei n. 30/2000, recai:
1) no processo de identificação do usuário de drogas, cuja ocorrência é encaminhada para uma comissão que avaliará a condição de uso da(s) droga(s);
2) na competência para o processamento, aplicação e execução das sanções (artigo 5º), sob a responsabilidade de uma comissão denominada Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência", composta por um jurista e por mais dois membros que poderão ser escolhidos entre médicos, psicólogos, sociólogos, técnicos de Serviço Social ou outros, desde que demonstrem competência na área da toxicodependência. À comissão, correspondente à área de domicílio do consumidor, cabe definir as condições de consumo, o grau de dependência da droga e as condições econômicas do consumidor (artigo 10), sendo facultado ao usuário fazer-se acompanhar do seu terapeuta, bem como solicitar exames médicos para a formulação do juízo a ser emitido pela comissão.
A Lei n. 30/2000 prevê também que para os consumidores eventuais a sanção poderá ser multa (ou admoestação em alternativa à multa ou a "título principal") ou sanção pecuniária, mas em relação aos "toxicodependentes" a sanção não é pecuniária. Em ambos os casos a sanção, determinada pela comissão, visa prevenir o consumo de droga (artigo 15º), sendo competência da comissão avaliar as condições do usuário ou dependente de drogas, bem como a natureza e as circunstâncias em que foi consumida.

2. Os resultados da política de descriminalização das drogas em Portugal
Segundo matéria publicada na revista Dependências - Só para Profissionais (2009), do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) de Portugal, o constitucionalista liberal norte-americano Gleen Greenwald8 indica o sucesso que Portugal vem obtendo, frente aos demais países da União Europeia, no tocante à "descriminalização das drogas e quanto à política de dissuasão".
Greenwald, segundo Dependências (2009), analisa os dados estatísticos de Portugal e destaca, entre outros, que o consumo de drogas entre a população mais jovem diminuiu, da mesma forma que a mortalidade decaiu de 400 para 290, no período de 1999 a 2006, incluindo, na estatística, a diminuição de doenças correlatas (Dependências, 2009).
O consumo continua proibido, destaca o constitucionalista, mas no lugar da prisão há multa, reprimenda e o encaminhamento para tratamento, situação esta diferente do que ocorre em outros países como a Espanha, "onde as sanções, apesar de raras, obrigam à instituição de processos penais" (Greenwald, 2009, apudDependências, 2009, p. 8).
Em Portugal, o crescimento de pessoas em programas de substituição, de 1999 a 2003, teve um acréscimo de 147%. Greenwald, citando dados de 2006 da revista Dependências, afirma que "a prevalência do consumo desceu de 14,1% para 10,6% (face a 2001) na faixa etária 13-15 anos, e de 27,6 para 21,6% nos 16-18 anos". Continua a matéria:
A ligeira subida nas faixas etárias seguintes, conclui, não se prende com mais consumo, mas porque os jovens consumidores pré-descriminalização estão hoje mais velhos. Ou seja, se os adolescentes consomem menos, a prazo, menos adultos consumirão. (Dependências, 2009, p. 8)
Greenwald registra ainda que o temor de um possível consumo generalizado de drogas em Portugal, com a lei da descriminalização, não se efetivou e que 95% das pessoas atendidas pelas Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência/CDT são portugueses e apenas 1% dos demais países da Europa.
No que se refere às taxas de uso, pós-descriminalização, Portugal tem as mais baixas da União Europeia quando comparadas com outros países onde figura a criminalização da droga.
Em quase cada categoria de droga, e para o uso da droga total, as taxas de prevalência ao longo da vida na era da pré-descriminalização dos anos 90 eram mais elevadas do que as taxas do pós-descriminalização. Além disso, os indicadores de tráfico de droga, como medido pelos números de condenados por esse delito, também declinaram fortemente desde 2001. (Dependências, 2009, p. 13)
Como já assinalado, o objetivo, apontado pela Comissão para a Estratégia Nacional de Combate à Droga, em 1998, não era apenas "reduzir o abuso e o uso de drogas", mas também incentivar a busca voluntária, pelos usuários, ao tratamento como "medida alternativa a sentenças de prisão".
Para João Castelo-Branco Goulão9, antes da descriminalização os dependentes de drogas tinham receio de procurar os serviços de tratamento por medo de serem presos ou processados, mas com o novo marco legal Portugal figura, como destaca Greenwald, como o único Estado da União Europeia que claramente descriminaliza o uso de drogas porque o enquadramento jurídico, decretado pelo país, removeu a conduta do usuário ou do dependente de droga da esfera da lei criminal.
Antes da descriminalização, Portugal defrontava-se com o uso considerado "problemático" de drogas, sobretudo o da heroína injetável, e com as consequências decorrentes desse uso, nomeadamente a infecção pelo HIV, hepatites virais e Aids.
Da mesma forma, nos anos 1990 houve um aumento significativo de detenções relacionadas com delitos e drogas e o uso de heroína:
[...] em 1998, mais de 60 por cento das detenções relacionadas com drogas eram devido a uso ou a posse, mais para a venda. A quantidade de drogas apreendidas durante essa década também cresceu significativamente. (Dependências, 2009, p. 13)
No que se refere à procura por tratamentos, na era pós-descriminalização, a avaliação também é bastante positiva, seja pelo aumento no volume de financiamento dos serviços de saúde, seja pela "procura e adesão voluntária" aos programas de tratamento:
O número de pessoas em tratamento de substituição subiu de 6.040 em 1999 para 14.877 em 2003, um aumento de 147%... O número de vagas em unidades de desintoxicação, comunidades terapêuticas, CAT e outros dispositivos também aumentou... A estratégia nacional conduziu directamente a aumentos e incrementos na escala de actividades do tratamento e da prevenção em Portugal. (Dependências, 2009, p. 13)
Os indicadores apresentados no relatório do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) de Portugal de 2006 apontam que desde 2004 as infecções para o HIV permaneceram estáveis, tendência essa que o relatório do IDT relaciona com medidas de redução de danos, seja pela diminuição do uso intravenoso de drogas ou ainda pelo uso intravenoso, mas em condições sanitárias mais adequadas, fato este atribuído ao programa de trocas de seringas. Indica ainda que, desde 2000, houve "uma ligeira diminuição nas taxas de novas infecções por hepatite B e C em todo país" (Dependências, 2009, p. 13) atribuída aos programas de tratamento.
Em 1999, na era pré-descriminalização, Portugal era tido como o país da União Europeia com a taxa mais elevada de HIV entre os usuários de drogas injetáveis. Mas,
entre 1999 e 2003, havia uma redução de 17% nas notificações de novos casos de HIV relacionados com drogas... Havia também reduções nos de casos monitorizados de hepatites C e B em centros de tratamento, apesar do número crescente de toxicodependentes em tratamento. Além da doença, as taxas de mortalidade relacionadas com drogas também diminuíram. Embora o número dos exames toxicológicos empreendidos como parte das investigações pós-morte tenham aumentado substancialmente a cada ano desde 2002, o número de resultados positivos é de longe mais baixo do que os níveis verificados durante 2000 e 2001. (Dependências, 2009, p. 13-14)
No que se refere a mortes relacionadas com drogas houve um decréscimo, quando se compara os anos 90 (pré-descriminalização) com os anos posteriores à descriminalização. Nos anos 90, os dados informados indicam que
o número de mortes agudas relacionadas com drogas aumentou cada ano, mais do que dez vezes de 1989 a 1999, alcançando um total de quase 400 em 1999. O número total de mortes relacionadas com drogas diminuiu do ano da pré-descriminalização de 1999 (quando totalizou perto de 400) a 2006 (quando o total era 290). (Dependências, p. 14)
Ainda,
as mortes relacionadas com drogas, de 2002 a 2006, para cada substância proibida, ou declinaram significativamente ou permaneceram constantes comparativamente com o verificado em 2001. Em 2000, por exemplo, o número de mortes relacionadas com opiáceos (heroína incluída) estava em 281. Esse número diminuiu fortemente desde a descriminalização, para 133 em 2006. (Dependências, 2009, p. 14)
É importante ressaltar, conforme aponta a matéria, que nenhum dos receios dos opositores à política de descriminalização das drogas em Portugal se efetivou. Ao contrário, os "benefícios" previstos com a implantação da descriminalização neutralizaram os supostos efeitos negativos. Mas na União Europeia,
a dependência de drogas, o uso e as patologias associadas continuam a subir exponencialmente em muitos estados da UE, esses problemas - em cada categoria relevante - estiveram contidos ou melhorados de forma mensurável em Portugal desde 2001. [...] enquanto o uso na UE continua a aumentar, incluindo naqueles estados que continuam a adoptar a linha mais dura criminalizando a posse e o uso de drogas. (Dependências, 2009, p. 14)
"Idealmente", os programas de tratamento deveriam ser "estritamente voluntários", mas o modelo do programa português é "certamente preferível" ao modelo "criminalizador", devendo aquele modelo ser levado em conta pelos "decisores políticos em todo o mundo" (Dependências, 2009).

Considerações
Deve-se ressaltar, primeiramente, que as drogas são produtos de relações sociais historicamente demarcadas e respondem, como "valor de uso", a determinados desejos, deleites e necessidades próprios de cada época. Em segundo lugar, as drogas são mercadorias e como tais devem ser tratadas porque estão inseridas no processo de acumulação na sociedade capitalista e respondem à necessidade intrínseca, própria das mercadorias, de gerar valor na esfera da produção e sua consequente realização na esfera da circulação.
Nesse sentido, a análise da questão das drogas tem que ser feita a partir de sua particularidade histórica e contextualizada às implicações econômicas, políticas e sociais que daí decorrem.
As drogas servindo ao processo de acumulação do capital comportam, ao mesmo tempo, pelo seu uso abusivo, expressões da questão social e, dessa forma, rebatem diretamente na intervenção profissional, colocando para os assistentes sociais a exigência de um agir ético-político, fundamentado numa perspectiva de totalidade das relações sociais capitalistas, para que não incorram no equívoco de uma intervenção que recorta os indivíduos e as famílias em suas particularidades sem a relação com o todo. A questão das drogas também coloca para os profissionais assistentes sociais - no limite da sociedade capitalista - o seu envolvimento na luta, e parece que aí está o elemento novo, pela ampliação de políticas de enfrentamento das questões decorrentes do uso abusivo de drogas de forma diversa das que existem atualmente. Políticas que, reconhecendo a natureza da produção e da circulação das drogas, caminhem no sentido não da mera repressão aos usuários de drogas e aos que estão na "ponta", no "varejo" do tráfico, mas que contemplem ações que sejam capazes de se contrapor às drogas no processo de (re)produção das relações sociais capitalistas.
O caminho passa, seguramente, pela descriminalização das drogas e de seus usuários - de que a experiência de Portugal é bastante elucidativa. No Brasil, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de liberar a "marcha da maconha" em São Paulo já é um alento (Notícias STF, 2011).
Considera-se, contudo, que essa perspectiva ainda não é suficiente. É preciso ir mais longe e explicitar o que está implícito nas mercadorias drogas e nas políticas repressivas do Estado capitalista. É preciso traçar estratégias em relação às drogas ilícitas, no mínimo, da mesma forma como é feito com as drogas lícitas e enfrentar a contradição repressão/descriminalização com elementos de redução de danos para ampliar as alternativas de um uso mais seguro. Essa tarefa não é fácil, uma vez que se liga às questões estruturais, requisitando transformações na base estrutural da sociedade.

Referências bibliográficas
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Recebido em 4/9/2012
Aprovado em 11/3/2013



* A análise sobre a política de descriminalização das drogas em Portugal foi produzida durante a realização de estágio doutoral no Instituto Superior Miguel Torga (ISMT), em Coimbra/Portugal, no período de julho a dezembro de 2010, sob a cossupervisão da profa. dra. Alcina Maria de Castro Martins. A realização do estágio só foi possível em virtude do intercâmbio existente entre o Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e o referido instituto e mediante a concessão de bolsa da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), através do Programa de Doutorado no país com Estágio no Exterior (PDEE).
1. Recai sobre o Estado responder institucionalmente a essas demandas, mas no contexto da "refilantropização social" (Iamamoto, 1999) é cada vez mais crescente o apelo à "solidariedade social", através de parcerias entre o Estado e a sociedade civil, onde se inserem as ONGs e algumas organizações empresariais.
2. A análise fragmentada em relação ao indivíduo e à família atinge indistintamente ricos e pobres, mas para os pobres uma perspectiva de análise que não considera a totalidade das relações sociais ganha uma conotação maior, reforçando o preconceito, invariavelmente ligado à cor e à condição de classe e, por fim, à associação "preto-pobre-marginalidade" (Zaccone, 2008).
3. Conforme Mészáros (2006), os aspectos políticos da alienação estão na relação entre a liberdade e a propriedade. Nas relações caracterizadas pela alienação, a sociabilidade dos indivíduos fica impedida; o seu fazer "rude" os consome e, diariamente, têm que vender a sua força de trabalho trocando-a por dinheiro para satisfazer as suas carências de sobrevivência.
4. A circulação pressupõe, necessariamente, o consumo.
5. A referência não tem em vista aqueles que se encontram no comércio varejista das drogas, mas aqueles que dominam a esfera da produção e da circulação, os capitalistas das drogas, e os que se beneficiam desse lucrativo negócio. Os varejistas certamente se beneficiam dos negócios das drogas, mas sua participação é residual no usufruto dos lucros astronômicos, haja vista que se inserem nesse ramo de atividade apenas trocando a sua mercadoria força de trabalho pela mercadoria dinheiro, não detendo os meios de produção e capital.
6. Coordenador institucional do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT, citado pela revista Dependências - Só para Profissionais. Disponível em: <http://www.dependencias.pt>. Acesso em: 12 out. 2010.
7. Exceção feita ao consumidor ocasional que poderia beneficiar-se da dispensa da pena (prisão ou multa).
8. O autor apresentou em abril de 2009, no Cato Institute Washington, o relatório intitulado "Descriminalização da droga em Portugal: lições para criar políticas justas e bem-sucedidas sobre a droga". Disponível em: <http://www.dependencias.pt>. Acesso em: 12 out. 2010.
9. Presidente do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) de Portugal, citado pela revista Dependências- Só para Profissionais. Disponível em: <http://www.dependencias.pt>. Acesso em: 12 out. 2010.

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