terça-feira, 16 de setembro de 2014

Esferas de Aristóteles, círculos de Ptolomeu e instrumentalismo de Duhem



Aristotle's spheres, Ptolemy's circles and Duhem's instrumentalism


Humberto Antonio de Barros-Pereira1
Graduando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil



RESUMO
Este artigo apresenta um comparativo das cosmologias aristotélica e ptolomaica, cujos modelos são detalhadamente descritos, e a concepção instrumentalista de Duhem sobre Ptolomeu para determinar a existência ou não do conflito epistemológico entre realismo e instrumentalismo na astronomia grega.
Palavras-chave: história da ciência, filosofia da ciência, astronomia, cosmologia.

ABSTRACT
This paper present a comparative between the Aristotle's and Ptolemy's cosmology, whose planetary models are shown in detail, and the Duhem's instrumentalism conception about Ptolemy to establish the existence or not of the epistemological conflict between realism and instrumentalism in greek astronomy.
Keywords: history of science, philosophy of science, astronomy, cosmology.



1. Introdução
A caracterização de Ptolomeu como instrumentalista, em oposição ao realismo de Aristeles, e amplamente empregada devido a Duhem, um dos grandes pioneiros da Historia da Ciência, que, em Sózien ta phainómena. Essai sur la notion de theorie physique de Platon à Galilée (1908) [1], viu no slogan "salvar os fenômenos", ou "salvar as aparências", a motivação dos antigos e medievais astrônomos na busca da explicação cinemática dos fenômenos celestes, por meio de movimentos circulares e uniformes, independente da realidade. Atualmente, é de conhecimento que a paternidade deste programa de estudo é, possivelmente, de Posidônio [2] e não de Platão como foi estabelecido no texto de Simplício em seu Comentário do De caelo de Aristóteles:
Platão admite, em princípio, que os corpos celestes se movem com um movimento circular, uniforme e constantemente regular; ele coloca então este problema aos matemáticos: quais são os movimentos circulares, uniformes e perfeitamente regulares que convém tomar como hipótese, a fim de poder salvar as aparências apresentadas pelos planetas? [1, p. 7]
Para analisar a concepção de Duhem sobre a astronomia grega - onde ele vê, como expressão do conflito entre formas epistemológicas contrárias: realismo e instrumentalismo (designações estas não empregadas por ele), que havia desde a antiguidade duas distintas concepções nos estudos astronômicos: a astronomia física, que objetivava descrever o universo de modo realista, e a astronomia matemática, que descrevia os movimentos celestes em termos geométricos, cabendo, assim, ao astrônomo a tarefa de salvar os fenômenos [2].
De um lado, estava a astronomia; geômetras como Eudoxos e Callipos combinavam teorias matemáticas por meio das quais podiam ser descritos e previstos os movimentos celestes, enquanto que os observadores julgavam o grau de concordância entre as previsões do cálculo e os fenômenos naturais. De outro lado, estava a física propriamente dita ou, para falar a linguagem moderna, a Cosmologia celeste; pensadores como Platão e Aristóteles meditavam sobre a natureza dos astros e sobre a causa de seus movimentos. [1, p. 104]
É apresentado, abaixo, um comparativo da cosmologia aristotélica e da ptolomaica, cujos modelos planetários deste são pormenorizadamente descritos, seguido da análise epistemológica com caracterização do slogan "Salvar os Fenômenos" e da análise do instrumentalismo de Duhem.

2. Astronomia grega
A história da astronomia grega pode ser subdividida em quatro períodos: o primitivo, cuja caracterização é dificultada pela existência somente de fragmentos de textos, o da confecção de calendários a partir de observações cada vez mais precisas, o do desenvolvimento de um modelo esférico do cosmos (Platão, Eudoxos, Calipo e Aristóteles); e o do desenvolvido após a assimilação da astronomia babilônica, de sistemáticas observações e acuradas previsões de fenômenos lunares e planetários devido ao seu caráter astrológico, cujos esquemas aritméticos foram substituídos por elaborados modelos cinemáticos geométricos pelos gregos: Hiparcos e Ptolomeu.
Aristóteles desenvolve todo um corpo filosófico baseado na percepção, nos sentidos, ao modificar o sentido dephýsis, que deixa de significar a totalidade do ser (o ser e o não-ser, o corpóreo e o não corpóreo) para referir-se só ao tangível, pois a essência das coisas, segundo ele, esta nas próprias coisas. Portanto, o cosmos aristotélico, apresentado no De caelo [3], é um todo filosófico, sendo que "o Todo é necessariamente e completamente perfeito" [3, p. 44]. Embora não sendo astrônomo, integra as observações e as melhores teorias conhecidas à sua filosofia física. Assim, ao descrever o cosmos, adota o modelo geométrico de esferas motrizes homocêntricas heteroaxiais de Eudoxos e de Calipo, transformando os constructos geométricos [4] em esferas corpóreas constituídas do elemento éter, ou seja, transforma objetos conceituais em reais, concretos.
Aristóteles demonstra, partindo de premissas tomadas a priori como verdadeiras, a existência e as propriedades do quinto elemento, o éter, diferente dos elementos: terra, ar, água e fogo.
Todo movimento com respeito ao lugar, que chamamos translação, tem de ser retilíneo, circular ou mescla de ambos: estes dois, com efeito, são os unicos simples. A razão é que só estas magnitudes são simples, a saber, a retilínea e a circular. Circular, pois é o movimento em torno ao centro, e retilíneo, o ascendente e o descendente. E denomino ascendente o que se distancia do centro, e descendente o que se aproxima do centro. De modo que, necessariamente, toda translação sempre ocorrerá desde o centro, para o centro ou em torno ao centro. (...)
Dado que existe o movimento simples, que é o movimento circular, (...) é necessário que haja um corpo simples que lhe corresponda, de acordo com sua própria natureza. (...)
O movimento circular tem de ser necessariamente primário. Pois o perfeito é anterior por natureza ao imperfeito, e o círculo esta entre as coisas perfeitas. (...) Por conseguinte, e posto que o movimento primário seja próprio de um corpo primário por natureza, o movimento em círculo é anterior por natureza ao retilíneo. (...)
A partir disto, é evidente, então, que exista, por natureza, alguma outra entidade corporal diferente das formadas aqui (os elementos - terra, água, ar e fogo - em movimento retilíneo), mais divina e anterior a todas elas. [3, p. 44-49]
Ainda:
O corpo que se desloca em círculo é impossível que possua gravidade ou leveza, pois nem por natureza nem de maneira antinatural cabe a ele mover-se para o centro ou afastar-se do centro. (...)
Igualmente razoável é supor também acerca de que ele não é gerado e é incorruptível, não suscetível de aumento nem de alteração. (...)
Como não é suscetível de aumento nem de destruição, pelo mesmo raciocínio temos de supor que é também inalterável. (...)
É evidente que o imortal seja envasado pelo imortal, sendo impossível que seja de outro modo. Logo se existe algo divino, como é o caso, também, é correto o que se acaba de expor. (...) Por isso, considerando que o primeiro corpo é distinto da terra, do fogo, do ar e da água, chamaremos de éter ao lugar mais excelso, sendo essa denominação dada a partir do fato de deslocar-se sempre. [3, p. 44-57]
Continuando com a caracterização espacial e temporal do cosmos, Aristóteles descreve o cosmos como finito - "não existe em absoluto nenhum corpo fora do céu" [3, p. 73], único e eterno - "não somente único, sendo que é impossível que se formem vários, e que é eterno, por ser indestrutível e não gerado" [3, p. 83]; delimitado - "chamamos céu, em um sentido, a entidade do orbe extremo do universo, ou ao corpo que se encontra no orbe extremo do universo" [3, p. 85] e como "exteriormente não há lugar, nem vazio e nem tempo" [3, p. 87], o cosmos "abraça todo o tempo e toda sua infinitude é sua duração" [3, p. 88].
Prosseguindo, agora com enfoque cosmológico, Aristóteles dá forma esférica ao cosmos e o provê de rotacão, e, como seu cosmos é carente de vazio, caracteriza, também, como esféricas as camadas etéreas2.
Procedendo a distinção entre supralunar e sublunar, descreve os lugares naturais dos elementos sublunares (terra, água, ar e fogo) como esféricos e os ordena no espaço: "a água está em torno da terra, o ar em torno da água e o fogo em torno do ar" [3, p. 121].
É necessário que o céu <no sentido do primeiro orbe, orbe estelar> tenha forma circular: pois esta figura é a mais adequada à divindade e a primeira por natureza. [3, p. 118]
E porque a primeira figura é própria do corpo primeiro, e o corpo primeiro é o que se encontra no primeiro orbe, aquele que gira com movimento circular será esférico. E também o imediatamente contíguo a aquele: pois o contíguo ao esférico é esférico. E igualmente os corpos situados para o centro destes: pois os corpos envoltos por um esférico e em contato com ele hão de ser por força totalmente esféricos; e os situados abaixo da esfera dos planetas estão em contato com a esfera acima. De modo que cada camada será esférica: pois todos os corpos estão em contato e são contíguos com as esferas. [3, p. 119]
Os astros, por sua vez, são condensações esféricas do éter das esferas às quais pertencem, e, por estarem fixos a elas, se deslocam devido ao movimento de suas respectivas esferas.
O mais razoável e consequente com o exposto é consideram cada um dos astros como constituído por aquele corpo dentro do qual se deslocam. [3, p. 129]
Cada um dos < astros > se desloca com a rotação de sua esfera. [3, p. 130]
Só cabe que se movam as esferas e que os astros permaneçam quietos e se desloquem por estarem fixos às esferas. [3, p. 132]
E quanto à figura de cada um dos astros, o mais razoável é consideré-la esférica. [3, p. 138]
Ao contrário da Terra que esta imóvel no centro do cosmos, o movimento das esferas que contêm os astros é resultante da interação do movimento de outras esferas, exceto a esfera das estrelas que só possui um movimento regular.
O ato da divindade é a imortalidade, isto é, a vida eterna. De modo que a divindade terá necessariamente movimento eterno. E, posto que o céu seja assim (pois é um corpo divino), tem, por ele mesmo, corpo circular que se move sempre em círculo conforme sua natureza. [3, p. 114]
A cerca de seu movimento depois do que foi dito, cabe expor que é uniforme e não irregular. Digo isto do primeiro céu e da primeira translação: pois nos inferiores se combinam com mais translações para produzir uma só. [3, p. 124]
O máximo bem de todas as coisas é alcançar aquele fim primeiro; sendo, sempre melhor quanto mais próximo se está do bem supremo. [3, p. 142]
É, precisamente, por isso que a Terra não se move em absoluto e os astros próximos a ela apresentam poucos movimentos: pois não encontram o bem último, sendo que só até certo ponto podem alcançar o princípio mais divino. O primeiro céu <orbe estelar>, ao contrário, alcançao com um só movimento. Os astros situados entre o primeiro céu e os últimos conseguem, certamente, por meio de múltiplos movimentos. [3, p. 143]
No Meteorológicos [5], Aristóteles dá como causa dos meteoros, da aurora boreal, dos cometas e da Via Láctea o movimento das esferas etéreas ao ser transmitido ao mundo sublunar.
O <mundo sublunar> esta necessariamente em contato imediato com as transações superiores, de modo que toda sua potência esta governada desde lá: com efeito, aquele de onde procede o princípio do movimento para todas as coisas tem de ser considerado como a causa primeira. [5, p. 247]
Ao deslocar-se em círculo o primeiro elemento e os corpos que estão nele, a parte imediatamente contígua do mundo sublunar <o fogo, quente e seco> ao dissolver-se por efeito do movimento, se inflama e produz o calor. [5, p. 253]
...quando é movido pela revolução dos céus se inflama. [5, p. 259]
Mas é no Metafísica [6] que, tendo como base os modelos astronômicos de Eudoxos e de Calipo, Aristóteles descreve o movimento dos astros.
Mas, qual é o número de estes movimentos <dos astros> é o que devemos perguntar a aquela das ciências matemáticas que mais se aproxima da filosofia; quero dizer, à astronomia; porque o objeto da ciência astronômica é uma essência, é certo, pois as outras ciências matemáticas não têm por objeto nenhuma essência real, como a aritmética e a geometria. [6, p. 270]
A descrição dos movimentos das esferas etéreas já suscitou muita polêmica por ser dúbia ao entendimento sobre: qual composição dos modelos de Eudoxos e de Calipo é assumida por Aristóteles, a que astros são atribuídas as esferas reagentes, quais os movimentos mencionados que o Sol e a Lua não devem possuir; e, por fim, o ponto de maior dificuldade, a frase: "não haverá no todo mais de quarenta e sete esferas" [6, p. 273].
Como a nova edição das obras completas de Aristóteles (Revised Oxford Translation) [7] adota como valor, não os quarenta a sete, mas, sim, quarenta e nove; valor este demonstrado por Sosigene que explicou tal erro como sendo um equívoco quando de sua escritura [8]. Portanto, Aristóteles faz uso de seis esferas do sistema de Eudoxos, que descrevem o movimento da Lua e do Sol, e vinte e três do de Calipo, relativo aos planetas; e acrescenta, exceto para a Lua, esferas compensadoras (Tabela 1), restituintes de movimento, pois, devido às esferas serem concêntricas e o movimento ser transmito da periferia para o centro, acarretando às internas serem mais rápidas, é necessário a existência de esferas intercaladas, com movimento inverso, que corrijam esta influência, sendo a quantidade destas esferas para cada astro igual a do astro menos uma.


De modo geral, o De caelo apresenta uma explicação naturalista da causa do movimento das esferas etéreas, ou seja, giram em círculo por sua própria natureza intrínseca: "De todos os corpos e magnitudes naturais dizemos que são móveis por si em relação ao lugar" [3, p. 44]; Por outro lado, no Física [9] a causa do movimento é explicada pela influência, direta ou indireta, de um motor imóvel distinto dos corpos: "(...) se movem a si mesmos, embora estando fora deles a causa primeira: pois o motor é outra coisa distinta" [9, p.:417]. Mas é no Metafísica, onde ocorre a plena integração da filosofia aristotélica, que explica o primeiro motor, causa do movimento da esfera das estrelas, cujo movimento é transmitido às demais.
Posto que o que é movido é movido necessariamente por algo, que o primeiro motor é imóvel em sua essência, e que o movimento eterno é imposto por um ser eterno, e que o movimento único por um ser único (...) é preciso que o ser que imprime cada um desses movimentos seja uma essência imóvel e eterna. [6, p. 270]
O ser imóvel move como objeto do amor, e o que é móvel imprime o movimento a todos os demais. [6, p. 267]
Ptolomeu chega à conclusão, partindo de fatos observáveis, que o céu e a Terra são esféricos, estando esta imóvel no centro geométrico do céu; e admite serem os corpos celestes esferas sólidas homogêneas compostas de éter que se movem circular e regularmente, pois, "naturalmente, os matemáticos que faziam astronomia estavam submetidos a certos princípios físicos que não eram de sua competência questioná-los. Estes princípios tão só delimitavam o marco no qual se desenvolvia a investigação astronômica" [10, p. 19n3].
No início do livro Sintaxe Mathematica, mais conhecido como Almagesto [11], Ptolomeu apresenta a divisão do saber teórico, de tradição aristotélica, em três ramos: o teológico, que se preocupa com as coisas imateriais, o físico, que trata das coisas sujeitas à geração e a corrupção; e o matemático, que investiga a natureza das formas e dos movimentos que possuem os corpos materiais. Sendo este, do qual faz parte a astronomia ao se ocupar das coisas divinas e celestes ao investigar o que não sofre mudança, intermediário entre os outros ramos, pois participa de qualidades que os outros possuem.
Para descrever os movimentos dos astros celestes, desenvolve modelos geométricos, detalhadamente apresentados abaixo, cuja atual compreensão é dificultada pelo uso numérico de base sexagesimal2 e pela diferença existente entre as modernas funções trigonométricas e o uso de cordas da antiga trigonometria plana empregada.
Pode-se compreender perfeitamente o Principia sem ter um excessivo conhecimento da astronomia anterior, mas não se pode ler um só capítulo de Copérnico ou Kepler sem conhecimento do Almagesto. [12, p. 3]
2.1. Modelos Ptolomaicos
2.1.1. Sol
Ptolomeu parte da distinção, estabelecida por Hiparcos, entre o ano sideral e o tropical, que acarretou à tradição helênica a ruptura com a tradição babilônica que identificava o "ano solar" com o ano sideral, ou seja, na crença do retorno do Sol à mesma posição em relação às estrelas. A determinação feita por Hiparcos do ano tropical, que é o intervalo de tempo para o retorno do Sol ao mesmo solstício ou equinócio, em 365;14,483 dias foi assumida por Ptolomeu que, assim, obteve a velocidade média4 do Sol. Conforme a terminologia empregada na época, o sol médio era considerado um corpo ideal que se deslocava na eclíptica à velocidade média de 0;59,08,17,13,12,31 º/d em relação ao observador terrestre, e coincidia com o Sol verdadeiro no apogeu e no perigeu.
Para descrever a aparente irregularidade ou anomalia do movimento solar, adota, assim como Hiparcos, dois arranjos geométricos: o da órbita excêntrica, cujo centro esta alocado sobre a linha apsidal, a uma distância fixa do observador, denominada excentricidade (e), e o do epiciclo, cujo centro da deferente está fixado no observador e o centro do epiciclo percorre a deferente; tanto a deferente como a excêntrica têm o mesmo sentido dos signos do zodíaco, já o epiciclo é retrogrado em relação a eles. Embora a invenção do modelo do epiciclo seja atribuída, por Ptolomeu, a Apolônio, "hoje em dia não há dúvida de que tanto o modelo do excêntrico como o do epiciclo eram conhecidos muito antes de Apolônio, mas não é possível precisar o desenvolvimento anterior" [11, p. 391]. "Devido ao Almagesto, sabemos que este foi o primeiro a demonstrar a equivalência" [13, p. 135]. Ptolomeu, também, demonstra que ambos os arranjos são equivalentes quando a excentricidade (e) for igual ao raio do epiciclo (r) e as anomalias médias da excêntrica (km) e do epiciclo (αm) tiverem o mesmo valor absoluto (Fig. 1).


Na determinação dos parâmetros do modelo solar, Ptolomeu utiliza o arranjo da excêntrica, cujo raio (R = 60) é pré-estabelecido, e os períodos de 94  dias entre o equinócio vernal e o solstício de verão e de 92  dias entre o solstício de verão e o equinócio de outono; obtendo o valor de 2;30 para excentricidade (e). Ptolomeu inova ao estipular que todas as longitudes têm o ponto vernal ( 0º) como referência, calculando, assim, a longitude de 65;30º para o apogeu solar.
Ptolomeu denomina o ângulo, visto pelo observador, entre o sol verdadeiro e o sol médio de "equação" da anomalia (c) e para confeccionar a tabela de c(α) [11, p. 102] analisa o arranjo do epiciclo quando o Sol ocupa, para o observador, a posição perpendicular à linha apsidal (quadratura), que ocorre quando as anomalias médias (αm = km) são 92;23º e 267;37º; obtendo para a "equação" da anomalia o valor de 2;23º, que é o seu máximo valor (Fig. 2). Como assinala Neugebauer: "embora Ptolomeu não prove que a velocidade de P vista de O, nesta posição, é a velocidade média, isto é, igual a velocidade de C, faz uso freqüente desse fato" [14, p. 57].


Finalizando o estudo do movimento solar, temos que a longitude do Sol (λS), por ser em referência ao ponto vernal, é a soma da longitude da linha apsidal (λα) com a anomalia (k) (Fig. 3).


2.1.2. Lua
Movimento em longitude
Como explicação prévia ao início do estudo da trajetória lunar, era de conhecimento que a órbita da Lua apresentava uma inclinação em relação à eclíptica estimada em 5º. Embora esta obliquidade seja pequena, ela é causa do movimento latitudinal da Lua. Por outro lado, quando da análise do movimento longitudinal e de sua anomalia, considerado com referência à eclíptica, esta inclinação, por ser pequena, era negligenciada para efeito de cálculo. Mas como o retorno em latitude não corresponde ao retorno em longitude era de se supor que o eixo dos nodos da órbita lunar com a eclíptica tivesse movimento de rotação [11, p. 109].
Estes fatos eram do conhecimento de Hiparcos que, embora utilizando o método de origem babilônica que envolve o aparente diâmetro da Lua, assumido ser de 1/650 da órbita da Lua, ou seja, de 0;33,14, e o raio da sombra terrestre para a distância média da Lua, estimado em 2;30 raios da Lua, obteve para o movimento de rotação dos nodos o valor negativo de 0;03,10,41,06,46,49 º/d (Fig. 4).


Hiparcos também calculou o mês lunar, atualmente denominado mês sinódico, que é o tempo que a Lua leva para voltar a ocupar a mesma posição em relação ao Sol, em 29;31,50,08,20 dias e obteve que em 251 períodos sinódicos há 269 ciclos de anomalia longitudinal e que para 5.458 períodos sinódicos ocorrem 5.923 ciclos latitudinais. Ptolomeu, partindo destes dados e sabendo a velocidade média do Sol (0;59,08,17,13,12,31 º/d), calculou os seguintes valores:
a) 389;06,23,01,24,02,30,57º  percurso lunar durante um mês sinódico
b) 13;10,34,58,33,30,30 º/d 
 velocidade média diária em longitude
c) 13;03,53,56,29,38,38 º/d 
 velocidade média diária em longitude com anomalia (valor corrigido para 13;03,53,56,17,51,59 º/d)
d) 13;13,45,39,40,17,19 º/d 
 velocidade média diária em respeito ao nodo (valor corrigido para 13;13,45,39,48,56,37 º/d
e) 12;11,26,41,20,17,59 º/d 
 elongação média
A partir destes valores construiu a tabela dos movimentos em longitude média, da "equação" da anomalia e da elongação média [11, p. 114-119].
A teoria de Hiparcos para o estudo do movimento lunar empregava o modelo do epiciclo, equivalente ao da excêntrica, e a utilização de eclipses lunares para a determinação dos parâmetros lunares. Como Hiparcos não eliminou a anomalia solar de seus cálculos não obteve sucesso. Ptolomeu, por sua vez, inicia o estudo do movimento lunar pelo estudo do movimento longitudinal, conhecido como 1ª anomalia lunar, empregando somente eclipses lunares, pois as longitudes solares são suficientemente precisas e independentes de paralaxe.
Fazendo uso do arranjo da deferente, centrada no observador e movendo-se no sentido dos signos, com o epiciclo, movendo-se em direção contrária, e empregando somente três eclipses lunares encontrou valores do raio do epiciclo próximos a 5;15º, sendo este valor o adotado na construção de tabelas. Da tabela de c(α) [11, p. 139] temos que a 1ª anomalia lunar adquire valor absoluto máximo de 5;1º para α = 96º e α = 264º.
Lua - movimento em latitude
Para o estudo do movimento em latitude da órbita lunar, Ptolomeu assume o mesmo arranjo do movimento longitudinal (Fig. 5), onde o plano do epiciclo coincide com o plano da deferente, que é o plano inclinado da órbita em relação à eclíptica, cuja inclinação (i = 5º) é desprezada nos cálculos dos parâmetros do movimento longitudinal; a Terra permanece centrada no eixo dos nodos, que apresenta movimento de rotação de - 0;03,10,41,15,26,07 º/d.


Somente baseado em dados observacionais de pares de eclipses lunares, ao contrário do método empregado por Hiparcos que envolvia valores difíceis de serem determinados, e empregando, em seus cálculos, a distância angular da Lua ao ponto mais ao norte da órbita lunar (w'), ou seja, o ponto de maior declinação da orbita, elabora a tabela β(w'), que é a declinação em função do argumento para a longitude (w) para a inclinação orbital fixa de 5º [11, p. 160] (Fig. 6).


Ptolomeu, assim como Hiparcos, ao analisar os dados acumulados de observações de eclipses, desde os babilônios, encontrou discrepâncias entre os valores esperados e os obtidos. Seu estudo, tendo por base o modelo da 1ª anomalia, mostrou que há o incremento do tamanho do raio do epiciclo em comparação com a previsão, embora, aparentemente, esses desvios parecessem ser irregulares estão associados a determinadas posições de quadratura, pois nas posições em que a Lua está próxima ao apogeu ou ao perigeu os desvios ou são ínfimos ou não ocorrem. Para resolver este problema, desenvolve um modelo dependente da elongação solar que ao aproximar o epiciclo do observador simula o efeito do aumento de raio do epiciclo.
O arranjo adotado apresenta a Lua percorrendo o epiciclo, no sentido contrário ao dos signos, ao passo que o centro do epiciclo percorre a deferente no mesmo sentido, sendo a elongação (η) a diferença entre o sol médio e a lua média. O centro da deferente gira envolta do observador, a uma distância de 10;19, denominada excentricidade (e), no sentido contrário aos signos, com deslocamento, igual a elongação, medido a partir do eixo observador/sol médio. Ptolomeu manteve a correspondência com a 1ª anomalia, onde o centro do epiciclo, de raio igual a 5;15, apresenta velocidade constante em relação ao observador, e tanto na conjugação (η = 0º) quanto na oposição (η = 180º) a distância do centro do epiciclo ao observador permanece igual à da 1ª anomalia (OC = R = 60); o que possibilita o cálculo do raio da deferente (MC = R - e = 49;41). Isso implica que nas posições de quadraturas (η = 90º ou 270º) a distância entre o observador e o centro do epiciclo é mínima (OC= R-2e = 39;22) (Fig. 7).


De posse desses parâmetros, podemos notar que a menor distância entre a Lua e o observador é de 34;07 (= R – 2e – r) e que a máxima é de 65;15 (= R + r), o que leva a uma incoerência pois este grau de variação não condiz com a variação observada do aparente diâmetro lunar. "Ptolomeu nunca mencionou esta dificuldade embora não possa ter-se despercebido dela" [14, p. 88].
A análise mais acurada, quando a Lua em octante (η = 45º), mostra que a anomalia média (αm) é obtida a partir do ponto que Ptolomeu convencionou chamar de "apogeu médio" do epiciclo (Ā), que é a intersecção externa do epiciclo com a reta que passa pelo ponto diametralmente oposto ao centro da deferente em relação ao observador e pelo centro do epiciclo. A variação da direção desta reta, que corresponde a diferença entre a anomalia e a anomalia média, foi denominada inclinação do epiciclo (θ).
2.1.3. Planetas -movimento em longitude
Mercúrio
Ptolomeu adota para o movimento de Mercúrio o modelo no qual o planeta (P) percorre o epiciclo no mesmo sentido que o cento do epiciclo (C) percorre a deferente, que é o mesmo sentido dos signos. O centro da deferente (N) não permanece fixo, mas move-se, em sentido contrário ao dos signos, em volta do centro do excêntrico da deferente (M), que está localizado sobre a linha apsidal, a meia distância entre o apogeu (A) e seu ponto diametralmente oposto (π). O raio da deferente é pré-estabelecido (R = 60) e o raio do excêntrico da deferente é igual a excentricidade (e). A velocidade do centro da deferente em relação ao centro do excêntrico da deferente é a mesma do centro do epiciclo em relação ao ponto equante (E), que são iguais à longitude média solar (Fig. 8).


Ptolomeu inicia o estudo do movimento pela determinação da linha apsidal utilizando observações de máxima elongação (Tabela 2). Como as elongações das observações I e II são iguais, é indicativo de simetria do epiciclo com respeito à linha apsidal. Portanto, a bissetriz do ângulo entre as duas posições de Mercúrio é a linha apsidal. Procedendo assim, encontra os pontos da linha apsidal (A = 10º e A' = 10º). As observações III e IV vêm confirmar a definição da linha apsidal. Para estabelecer o apogeu, utiliza as observações V e VI que apresentam o centro do epiciclo próximo à linha apsidal. Como a menor elongação indica estar o epiciclo mais distante do observador, é determinado que o apogeu ocorra em 10º. Portanto, as observações de I a IV distam aproximadamente 120º do apogeu. Como a soma das elongações das observações I e II é maior que o dobro da elongação da observação V, Ptolomeu conclui que o centro do epiciclo nas posições distante 120º do apogeu está mais próximo do observador que no ponto diametralmente oposto ao apogeu.


Analisando antigas observações nota um incremento na longitude de 4º em 400 anos, que corresponde à constante de precessão, levando-o a concluir que não só a linha apsidal de Mercúrio mas as de todos planetas são sideralmente fixas.
Das observações VII e VIII, quando o centro do epiciclo está em quadratura (km = 90º), cuja projeção à linha apsidal é o ponto equante (centro do movimento uniforme do centro do epiciclo), e das V e VI determina que a distância do observador ao centro do epiciclo nesta posição é a mesma da do observador ao centro do epiciclo quando na posição diametralmente oposta ao apogeu, que o raio do epiciclo (r) é de 22;30 e que o equante, além de ser o ponto médio de OM, é igual à excentricidade (OM = OE = EM = e = MN) que é 3.
Por meio da análise da posição de Mercúrio em relação às estrelas fixas, determina que a variação diária da anomalia média (αm) é de 3;06,24,06,59,35,50 º/d.
Vênus
Ptolomeu adota para o movimento de Vênus o arranjo no qual o planeta (P) percorre o epiciclo no mesmo sentido que o cento do epiciclo (C) percorre a deferente, que têm o mesmo sentido dos signos. O centro da deferente (M), cuja distância ao observador é denominada de excentricidade (e), esta posicionado sobre a linha apsidal a meia distância do apogeu (A) e do perigeu (π). O raio da deferente é estabelecido (R = 60) e a velocidade do centro do epiciclo é uniforme em relação ao ponto equante (E). O centro do epiciclo, ou seja o planeta médio, coincide com o sol médio (Fig. 9).


Empregando igual procedimento ao utilizado em Mercúrio e baseado em observações de máxima elongação (Tabela 3), primeiro obtém, das observações I a VI, a posiçao do apogeu (A = 25º) e da o perigeu (π = 25º). Da análise das observações V e VI determina que o raio do epiciclo (r) é de 43;10 e que a excentricidade (e) é igual a 1;15. Das observações VII e VIII, quando o centro do epiciclo está em quadratura (km = 90º), cuja projeção à linha apsidal é o ponto equante, estabelece que o centro da deferente é equidistante do observador e do equante.


Finalizando o estudo do movimento de Vênus, estabelece, por meio de análise de diferentes posições em relação às estrelas fixas, que a variação diária da anomalia média é de 0;36,59,25,53,11,28 º/d.
Marte, Júpiter e Saturno
Para o estudo do movimento dos planetas Marte, Júpiter e Saturno, Ptolomeu emprega o arranjo no qual o planeta (P) percorre o epiciclo no mesmo sentido que o cento do epiciclo (C) percorre a deferente, que têm o mesmo sentido dos signos. O centro da deferente (M), cuja distância ao observador é denominada de excentricidade (e), está localizado sobre a linha apsidal a meia distância do apogeu (A) e do perigeu (π). Estabelece que a direção sol médio/observador é a mesma que planeta/centro do epiciclo (O // CP), que a velocidade do centro do epiciclo é uniforme em relação ao ponto equante (E) e, como em todo o estudo dos outros corpos celestes, o raio da deferente também é pré-estabelecido (R = 60) (Fig. 10).


O estudo do movimento desses planetas, por Ptolomeu, embora empregue o mesmo procedimento, é realizado individualmente. Inicialmente, assume que o centro da deferente coincide com o equante, para efeito de cálculo, pois a órbita planetária assim seria circular e três observações bastariam para defini-la; e, deste modo, baseado em três observações em oposição ao sol médio, determina o dobro da excentricidade. Dando seqüência à análise, com a separação do centro da deferente e do equante, define o apogeu e calcula, para a terceira observação de cada planeta, a longitude média em relação ao apogeu (km) e a anomalia média (αm). Prosseguindo, utiliza uma quarta observação, realizada após a terceira oposição, para a determinação do raio do epiciclo (r) (Tabela 4).


Combinando uma série de observações, também em oposição ao sol médio, onde calcula as anomalias médias e longitudes médias em relação ao apogeu, estabelece a variação diária da anomalia média para cada planeta (Tabela 5).


2.1.4. Planetas - movimento em latitude
Para o movimento dos planetas em latitude, Ptolomeu estabelece dois tipos de inclinações: o angulo entre o plano da eclíptica e o plano do deferente (i0) e o ângulo entre o deferente e o epiciclo (i1); e, também, que o eixo de inclinação do epiciclo é sempre paralelo ao eixo dos nodos do plano da deferente em relação à eclíptica (Fig. 11).
Para os modelos de Saturno e de Júpiter, baseado em dados de oposição e conjugação próximos ao apogeu e o perigeu, determina que as inclinações sejam constantes. Para Marte, que por apresentar raio do epiciclo e excentricidade maiores, utiliza somente observações de oposição próximas ao apogeu e ao perigeu; mas, como observa Neugebauer: "este modelo não é correto para um observador terrestre e, sim, para um observador ideal (O*) localizado no eixo dos nodos, pois a Terra não está posicionada no plano da deferente" [14, p. 210].
Já para os planetas interiores, Mercúrio e Vênus, Ptolomeu conclui que as inclinações não são constantes. Ou seja, o plano da deferente tem máxima inclinação (i0max) quando o centro do epiciclo está no apogeu e no perigeu, sendo também máxima a inclinação do plano do epiciclo em relação ao da deferente (i1max); quando o centro do epiciclo está 90ºdistante da linha apsidal o plano da deferente coincide com a eclíptica (i0min = 0º), sendo, nestas posições, mínima a inclinação ao plano do epiciclo em relação ao da deferente (i1min). Portanto, para Mercúrio e Vênus os nodos ascendentes e descendentes do plano da deferente em relação à eclíptica são variáveis, ao contrário dos outros planetas que são fixos (Tabela 6).


2.1.5. Disposição dos astros
Reconhecendo que a disposição dos corpos celestes é um tanto incerta, pois não observa paralaxe, adota a seguinte distribuição: Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno, divergindo da empregada por Platão e Aristóteles (Lua, Sol, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno), pois pensa ser correto o Sol dividir os planetas conforme apresentassem ou não distância angular com respeito a ele [11, p. 270].
No livro Hipóteses dos Planetas [15], Ptolomeu trata a questão da distribuição dos corpos celestes de forma sistemática, embora enfatize que "precisar as distâncias dos cinco planetas não é tão fácil como conhecer as distâncias das luminárias (Sol e Lua), porque estas distâncias são determinadas pelas medidas das combinações de seus eclipses. Ao que diz respeito aos cinco planetas não se pode argumentar da mesma forma, já que não existe fenômeno algum que permita precisar com certeza suas paralaxes" [15, p. 80]; sendo que determina, noAlmagesto V. 13, que a maior distância lunar é de 64;10 raios terrestres e a menor é de 33;33 raios terrestres, e, no Almagesto V. 15, obtém o valor de 1210 raios terrestres para a distância média solar. Procurando determinar a verdadeira ordem, partindo da premissa da inexistência de vácuo, "pois não se pode conceber que na natureza exista um vazio ou coisas sem sentido ou inúteis" [15, p. 85], o que leva à distância máxima da esfera do sistema de esferas de um corpo ser coincidente com a mínima da do imediatamente superior, Ptolomeu utiliza o critério de que a razão das distâncias relativas entre os distintos planetas e o centro da Terra (derivada dos modelos geométricos) é igual a razão das distâncias verdadeiras – máxima e mínima – dos planetas à Terra (Tabela 7).


2.1.6. Cosmologia
Embora adote a separação do cosmos em supralunar e sublunar, ataca a concepção cosmológica aristotélica ao criticar o sistema heteroaxial das esferas, com pólos pivotantes conectando esferas, e as esferas compensadoras; e ao ridicularizar a noção do primeiro motor aristotélico [15, p. 91-98]. Por sua vez, expõe que as esferas etéreas são inalteráveis, ou seja, eternas, e que apresentam dois tipos de movimentos: o universal e o local.
O movimento universal, cuja natureza deve ser simples, que não se mistura com nada e que de modo algum receba situações contrárias. Todos os planetas são afetados por esse movimento e se movem de leste para oeste (...). [15, p. 77]
O movimento local é o primeiro de todos os movimentos (...); é a causa das alterações e contradições qualitativas e quantitativas existentes nas coisas que não são eternas e origina mudanças que não se produzem do mesmo modo que nas coisas eternas, tal como nos parece em aparência, pois se produzem em seu próprio ser e em sua substância. [15, p. 78]
Portanto, os corpos celestes têm um movimento ao qual estão obrigados, causador da rotação diária, e um movimento voluntário, uma força vital.
Para melhor compreensão dos movimentos celestes, no Hipóteses dos Planetas, expõe todos os modelos apresentados no Almagesto de forma simplificada com exceção do modelo lunar, que não atinge a sofisticação matemática do Almagesto [16], para que "sejam mais facilmente compreendidos, tanto para nós mesmos quanto para os que preferem representá-las mediante a fabricação de instrumentos" [15, p. 57], onde cada esfera esta livre e solta. No sistema das esferas das estrelas fixas (Fig. 12) as estrelas estão dispersas por toda a extensão de sua esfera e só apresentam movimento universal. A esfera 1, responsável pela rotação diária, gira sobre o eixo AB (equador), e a esfera 2, onde estão as estrelas fixas, gira sobre o eixo CD (eclíptica) de tal modo que seu movimento com respeito às esferas 1 e 3 é igual. As esferas (1 e 3) são imóveis entre si. Como o sistema de Saturno vai dentro da esfera 3, esta lhe transmite a rotação diária; e, assim como numa matrioska, os sistemas vão sendo alocados até o sistema da Lua, sendo que entre os sistemas existe uma esfera transmissora da rotação diária denominada "motor". As esferas "motoras" não são encarregadas de mover os corpos celestes, pois estes se movem graças a sua força vital, mas, sim, de mobilizar todo o conjunto de esferas de cada astro. Logo, existem 8 esferas "motoras" que somadas às esferas dos sistemas (estrelas fixas -1 esfera, Mercúrio -7 esferas, Sol -3 esferas, Lua -4 esferas , e para cada um dos demais planetas -5 esferas) totaliza 43 esferas. Misteriosamente, Ptolomeu, somente neste trecho do Hipóteses dos Planetas [15, p. 119], diz que o sistema solar tem uma só esfera, sendo, então, o total de esferas corresponde a 41.


Em resumo, o cosmos ptolomáico quanto à caracterização física é esférico, delimitado pela esfera motora das estrelas fixas com a Terra imóvel no centro, e dividido em supralunar, com as esferas etéreas apresentando os movimentos universal e local, e em sublunar, só com movimento local, pois não há transmissão do sistema lunar ao sublunar do movimento universal; cujos modelos apresentados no Almagesto são reproduzidos no interior de esferas concêntricas.

3. Análise Epistemológica
3.1. "Salvar os Fenômenos" , o "problema de Platão e o instrumentalismo
Como o programa de explicar os fenômenos celestes por meio de movimentos circulares e uniformes não é de autoria de Platão, como escreveu Simplício, mas, sim, formulado séculos depois, quando dos elaborados modelos cinemáticos geométricos, remete-nos às questões: o que é o "problema de Platão" e o que é o programa "salvar os fenômenos".
O "problema de Platão" é, em essência, o estímulo dado por Platão à criação de modelos geométricos que explicassem os movimentos dos corpos celestes, que pode melhor ser observado no frontispício da Academia: "Não Entrará Nesta Casa Quem Não Soube Geometria"; cuja raiz está na descoberta dos irracionais pelos pitagóricos, que ruiu as esperanças de criação de uma cosmologia baseada na aritmética dos números naturais, causando a derrota tanto do atomismo de Demócrito quanto do pensamento de Pitágoras, uma vez que ambos estavam balizados na aritmética. Sendo, então, encorajada por Platão, a invenção de uma teoria geométrica de mundo.
Platão percebeu que a teoria puramente aritmética da natureza estava derrotada: que era necessário criar um novo método matemático para descrever e explicar o mundo. [17, p. 115]
Por sua vez, o método "salvar os fenômenos" é sobrepor relações matemáticas aos fenômenos [18, p. 35], ou seja, a caracterização matemática de objetos materiais mantendo-se estritamente no domínio dos fenômenos observados, sem procurar inferir as causas destes ou discutir sua natureza; o que difere do Instrumentalismo, pois este ao tratar objetos como constructos (conceituais) concebe a ciência como mero dispositivo computacional de descrição e previsão.
Mais precisamente, segundo a concepção instrumentalista, uma teoria funciona como uma "senha de inferência", de acordo com a qual conclusões sobre fatos observáveis podem ser tiradas de certas premissas fatuais, e não como premissa a partir da qual tais conclusões são deriváveis. Uma das conseqüências dessa concepção é que as teorias não possuem um significado descritivo, isto é, não podem ser interpretadas em termos de entidades e propriedades de um mundo real ou imaginário, possuindo apenas um significado operacional, dado em termos de operações de um computador físico, humano ou abstrato. [19, p. 230n]
3.2. Instrumentalismo de Duhem
Duhem, com sua reconstrução sistemática da mecânica medieval, levou ao abandono a concepção estabelecida de que a Idade Média era um período de trevas dominado pelo preconceito e ignorância, onde a busca de antecedentes significativos da ciência, caso existissem, devia ser na Antiguidade e não no medievo, pois ha-via a convicção de que a Revolução Científica do século XVII fora uma ruptura clara e decisiva com o passado imediato. Para Duhem, que sustentava a tese da continuidade do desenvolvimento da ciência, o nascimento da ciência moderna ocorrera no século XIII não de forma abrupta, mas decorrente do processo de transformação da concepção aristotélica.
Numa longa série de ensaios coletados em três volumes nos Estudos sobre Leonardo da Vinci chama a atenção para a fecundidade das correções medievais da mecânica aristotélica da queda livre e do movimento dos projéteis, apresentando pela primeira vez o tratamento cinemático medieval do movimento uniforme e uniformemente disforme (acelerado e retardo) que teve lugar nas escolas de Oxford (Merton College) e de Paris no século XIV. No âmbito desses estudos emergiram como figuras centrais no desenvolvimento da física medieval tardia Jean Buridan e Nicole Oresme. Foi Duhem quem descobriu e expôs a teoria medieval do "impetus", desenvolvida pelos terministas parisienses, revelando assim a origem desse conceito central no desenvolvimento da mecânica italiana do século XVI com Tartaglia e Benedetti e, posteriormente, na mecânica do século XVII com Galileu. [20, p. 125]
Seguindo as idéias instrumentalistas, iniciada por Osiander - "Nem tão pouco é necessário que estas hipóteses sejam verdadeiras nem até que sejam verossímeis, mas bastará apenas que conduzam um cálculo conforme as observações" [21, p. 1] - e Belarmino, por estes aplicadas como uma maneira de lidar com hipóteses científicas inconvenientes, e desenvolvidas por Berkeley, ao sustentar que a mecânica newtoniana se traduz num conjunto de equações que não pode explicar a essência oculta nas coisas [22]; Duhem faz a demarcação entre a física - estudo dos fenômenos, cuja fonte é a matéria bruta, e das leis que os regem - e a cosmologia - parte da metafísica que procura conhecer a natureza da matéria bruta, considerada como causa dos fenômenos e como razão de ser das leis físicas [23, p. 42]. Onde, por meio do método experimental, independente de toda e qualquer metafísica, "o estudo dos fenômenos e das leis deve preceder a procura das causas" [23, p. 43]. Sendo, portanto, o objetivo do trabalho científico, a produção de uma teoria física, que "ao classificar um conjunto de leis experimentais, não nos ensina absolutamente nada sobre a razão de ser dessas leis e sobre a natureza dos fenômenos que elas regem" [23, p. 47]. Ou seja, a teoria física é uma representação simbólica que, ao classificar as leis experimentais fornece regras gerais, é "absolutamente independente de toda metafísica" [23, p. 48] e "não é uma explicação metafísica do mundo material" [24, p. 25]. Portanto, para Duhem, o método "salvar os fenômenos" trata as hipóteses astronômicas como constructos geométricos, independentes da cosmologia, com os quais as observações celestes são organizadas.
Duhem associa o método de "salvar os fenômenos" à astronomia matemàtica:
Esta ciência <a astronomia> combina movimentos circulares e uniformes para fornecer um movimento resultante semelhante ao movimento dos astros; quando suas construções geométricas associam a cada planeta um movimento equivalente àquele que é revelado pelas observações, seu objetivo foi atingido, pois suas hipóteses salvaram as aparências. [1, p. 7]
E ao fazer a distinção entre a astronomia matemática e a astronomia física, deixa bem claro que são epistemologias contrárias. Sendo que a astronomia física trata objetos reais, ao passo que a astronomia matemática, praticada pelos geômetras, trata objetos conceituais.
O geômetra e o físico frequentemente consideram o mesmo objeto, mas que eles o consideram sob pontos de vista diferentes. Tal figura, tal movimento, são contemplados pelo geômetra em si próprios e de uma maneira abstrata; o físico, pelo contrário, estuda-os como o limite de tal corpo, o movimento de tal móvel. [1, p. 8]
As combinações de movimentos propostas pelos astrônomos são puras concepções, desprovidas de toda realidade, e por isso não precisam ser justificadas com a ajuda de princípios da física; devem apenas ser adaptadas de tal forma que as aparências sejam salvas. [1, p. 19]
A astronomia <matemática> não capta a essência das coisas celestes, dá somente uma imagem delas; esta imagem em si não é exata, apenas aproximada: a astronomia se contenta apenas com a aproximação. Os artifícios geométricos que nos servem de hipóteses para salvar os movimentos aparentes dos astros não são nem verdadeiros, nem verossímeis. São puras concepções que não poderiam ser tomadas reais sem se formular absurdos. [1, p. 20]
Por fim, Duhem estabelece o conflito entre o realismo de Aristóteles e o instrumentalismo de Ptolomeu.
Ptolomeu, para representar as desigualdades do movimento planetário, fez cada planeta ser transportado por um epiciclo cujo centro, ao invés de permanecer equidistante do centro do Universo, descrevia um círculo excêntrico ao Mundo, o arranjo de esferas imaginado por Adrastos de Aphrodisia e por Teon de Smyrna tornou-se incapaz de representar um tal movimento. Tal inadequação cresceu com cada uma das complicações que Ptolomeu foi obrigado a adicionar as hipóteses primitivas de Hiparcos, para que os fenômenos fossem salvos. (...) Certamente um peripatético não poderia admitir que as hipóteses da Syntaxe esta vam de acordo com os princípios de sua física. (...) É claro, portanto, que os adeptos de Ptolomeu eram obrigados a libertar as hipóteses astronômicas das condições às quais os físicos as haviam geralmente submetido, a menos que quisessem renunciar a sua doutrina. [1, p. 15-16]

4. Conclusões
Pelo exposto, em relação às cosmologias de Aristóteles e de Ptolomeu, podemos distinguir duas maneiras de fazer astronomia no mundo grego-helênico conforme o programa de investigação: a astronomia física, ou cosmologia, de origem aristotélica, que descreve e explica o mundo tal como ele é, na qual o Hipóteses dos Planetas esta inserido; e a astronomia matemática, que descreve os movimentos celestes de forma computacional, de origem platônica, na qual o Almagesto está situado. Estas duas astronomias, cada qual com suas normas e métodos, são disciplinas distintas e não concorrentes.
O intuito de Ptolomeu, apresentado no livro Hipóteses dos Planetas, mais do que criar sistemas didáticos nos quais os modelos descritos no Almagesto são inseridos, foi expor sua cosmologia estóica, ou seja: o cosmos ptolomáico é um organismo animado. Esta cosmologia difere da aristotélica, por que não só os sistemas celestes como, também, a física apresentada por Ptolomeu é diferente; como o próprio Duhem assinala: "Ptolomeu defende uma física muito semelhante a do <estóico> Cleanthes" [1, p. 17]. O que, somado ao fato de que as astronomias física e matemática eram disciplinas distintas. Portanto, a cosmologia ptolomaica não tem relação com a aristotélica.
Embora reconhecendo a importância dos trabalhos de Duhem sobre a história da ciência, discordamos da concepção duheniana de que Ptolomeu era instrumentalista, pois na cosmologia ptolomaica, além dos corpos celestes, serem reais e não objetos conceituais, constructos, Ptolomeu, no livro Hipóteses dos Planetas, infere causas e discute a natureza dos fenômenos. Não existiu, então, na astronomia grega o conflito epistemológico, estabelecido por Duhem, entre realismo e instrumentalismo. O que vai ao encontro da posição assumida por Popper, que vê, na Renascença, a origem das idéias instrumentalistas:
Duhem reivindica para o instrumentalismo uma descendência muito mais ilustre e antiga do que pode ser provado. [17, p. 127n].
Embora, a busca de Duhem por uma descendência antiga para o Instrumentalismo seja decorrência de seu pressuposto de que o desenvolvimento científico é contínuo, não podemos deixar de sublinhar que a análise equivocada de Duhem sobre sua suposição de Ptolomeu ser instrumentalista se deva, talvez, às limitações impostas ao pioneirismo ou, talvez, ao seu desconhecimento do texto integral do Hipóteses dos Planetas, pois parte substancial dele só foi redescoberta, cerca de 60 anos após a publicação de seus trabalhos, por Goldstein [25].

Referências
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Recebido em 17/8/2010; Aceito em 4/1/2011; Publicado em 8/7/2011


1 E-mail: humberto.pereira@usp.br
2 Para melhor entendimento do cosmos aristotélico, o rótulo "esferas cristalinas", criado ao final da Idade Média em referência aos orbes etéreos, não é empregado, pois, como exposto, o éter transcende a imaginação humana, capacidade esta que só representa objetos segundo qualidades dadas à mente através dos sentidos.
3 Valores expressos no sistema sexagesimal podem ser transformados ao sistema decimal, e vice versa, conforme exemplo: 51,7;32,49 
 51.601 +7.600 +32.60 -1 +49.60 -2.
4 Os sistemas geocêntricos ptolomaicos são baseados em geometria esférica. Logo, todas velocidades são angulares. Para evitar prolixidade, o adjetivo angular é suprimido no texto, ficando-o subentendido.

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