quinta-feira, 17 de julho de 2014

Reumatismo pós-quimioterapia: uma disfunção da tolerância imunológica?

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Post-chemotherapy rheumatism: an immunological tolerance dysfunction?


Marcelo Cruz RezendeI; Arlete Delfina Marques MaiaII; Alex Magno Coelho HorimotoIII
IChefe do Serviço de Reumatologia da Santa Casa de Campo Grande, Campo Grande - MS, Brasil
IIMédica hematologista do Serviço de Hematologia da Santa Casa de Campo Grande, Campo Grande - MS, Brasil
IIIR2 em Clínica Médica do Programa de Residência Médica da Santa Casa de Campo Grande



RESUMO
O reumatismo pós-quimioterapia (RPQ) é uma síndrome pouco descrita na literatura, que se caracteriza por poliartralgia desenvolvida um a quatro meses após o término de diversos esquemas quimioterápicos, no contexto de vários tipos de câncer. Relatamos o caso de uma paciente de 21 anos com linfoma de Hodgkin, em cujo esquema quimioterápico não foi utilizada a droga ciclofosfamida, considerada como possível fator etiológico. Sugere-se, então, a possibilidade de uma disfunção transitória do mecanismo de tolerância imunológica.
Palavras-chave: reumatismo pós-quimioterapia, linfoma Hodgkin, tolerância imunológica.

ABSTRACT
Post-chemotherapy rheumatism is a rare syndrome characterised by polyarthralgia that develops following a period of 1 to 4 months of various forms of chemotherapy for cancer treatment. There is very little representation of post-chemotherapy rheumatism (PCR) in literature. Here we report the case of a 21 years old girl with Hodgkin lymphoma who was not treated with cyclophosphamide, the drug considered as an etiological factor in PCR. Rather, we suggest the possibility of a transitory dysfunction in immunological tolerance mechanisms.
Keywords: post-chemotherapy rheumatism, Hodgkin's lymphoma, immunological tolerance.



INTRODUÇÃO
O reumatismo pós-quimioterapia (RPQ) é uma enfermidade cuja descrição inicial partiu de Loprinzi et al.(1), em 1993, como uma síndrome de poliartralgia e rigidez ocorrendo após esquema quimioterápico para câncer de mama com ciclofosfamida e 5-fluoruracil.
Atualmente há oito trabalhos sobre o assunto publicados na literatura médica (fonte MEDLINE). Foram relatados nos últimos dez anos somente 24 pacientes portadores da síndrome, em grande maioria mulheres (95,65%), sendo o câncer de mama o mais prevalente nas pacientes (73,91%).
A literatura sugere a participação da ciclofosfamida no desencadeamento da RPQ(2,3,8,9), devido a sua existência em todos os esquemas quimioterápicos utilizados nos pacientes descritos até o momento.
Os efeitos colaterais mais comuns dos medicamentos quimioterápicos incluem agudamente a toxicidade gastrintestinal e mielossupressão(11,12). O reumatismo pós-quimioterapia pode representar uma complicação subaguda do uso de quimioterápicos.
O seu reconhecimento interessa a clínicos, oncologistas, reumatologistas, entre outros profissionais.

RELATO DE CASO
Trata-se de mulher de 21 anos que iniciou em maio de 2000 quadro de aumento de volume cervical (adenomegalias) em cadeias anteriores e laterais, principalmente à esquerda e não dolorosas no início.
Evoluiu nos dez meses seguintes sem alterações clínicas significativas, exceto com dor abdominal difusa tipo ardência, ficando grávida no período. A gestação seguiu sem intercorrências e o parto foi cesáreo a termo.
Dois meses após o parto, ocorreu aumento dos gânglios cervicais, agora dolorosos e acompanhados de adenomegalias inguinais. Referia também febre alta noturna intermitente, adinamia, hiporexia, emagrecimento de 5 kg no período e dor torácica na região anterior tipo compressão, o que levou a paciente a procurar auxílio médico.
Em maio de 2001 foi encaminhada para avaliação hematológica por apresentar um quadro de adenomegalias e anemia. A investigação diagnóstica armada revelou adenomegalia paratraqueal direita, linfoadenomegalias supraclaviculares e cervical súpero-lateral esquerda e lnfoadenomegalias pélvicas.
Procedida biópsia no gânglio cervical esquerdo, que mostrou-se compatível com diagnóstico de linfoma de Hodgkin subtipo esclerose nodular (imunohistoquímica). Estádio clínico III2B.
Proposto tratamento quimioterápico com o esquema ABVD/MOPP, iniciando em junho de 2001, conforme Tabela 1.


Recebeu alta após dez ciclos em julho de 2002, considerada em remissão completa, sendo acompanhada mensalmente pela Hematologia.
Em novembro de 2002, ou seja, quatro meses após o término da quimioterapia, iniciou quadro de polimialgia difusa e poliartralgia simétrica e aditiva, principalmente em metacarpo-falangeanas (MCF), tornozelos e pés. Raramente acometia os joelhos (sic). Referia rigidez matinal maior que 30 minutos e piora com inatividade.
Ao exame físico encontrava-se normal, exceto por uma leve dor à palpação das articulações MCF e interfalangeanas proximais (IFP).
Extensa investigação de recidiva tumoral foi realizada, com hemogramas seriados, tomografia computadorizada (TC) de abdome e tórax, cintilografia óssea com tecnécio-99M e gálio-67 sem que alterações compatíveis fossem observadas.
Exames complementares de investigação para doenças do tecido conjuntivo, como FAN, FR, anti-DNA e anti-Sm foram todos negativos, assim como infecções virais como hepatite C. (Tabela 2).


A paciente também não apresentava critérios clínicos como pontos dolorosos, alterações do humor ou sono, fadiga, etc., descartando-se, portanto, o diagnóstico de síndrome da fibromialgia.
O tratamento com anti-inflamatórios não hormonais (AINHs) não mostrou resultado satisfatório, mesmo com o aumento da dose. O uso de corticosteróides (CE), em associação ou não, também não promoveu uma melhora significativa, sendo necessário o uso conjunto de opióides, AINHs, analgésicos e CE para se obter algum controle da sintomatologia dolorosa. Atualmente encontra-se em remissão completa do quadro doloroso, 11 meses após o início da síndrome.

DISCUSSÃO
O presente relato corrobora a descrição da literatura(1,4) de que o reumatismo pós-quimioterapia é uma síndrome caracterizada por mialgia e poliartralgia que se inicia de um a quatro meses do término de quimioterapia, evoluindo para cura espontânea em torno de um ano.
Trata-se do primeiro caso relatado na literatura da síndrome associada ao linfoma de Hodgkin. Na grande maioria, o câncer de mama foi o mais prevalente com 17 casos(1,4,9), seguido de quatro casos de linfoma não Hodgkin(5) e um caso de câncer ovariano(2).
Constata-se dessa forma que a síndrome RPQ independe do tipo de neoplasia, assim como do esquema quimioterápico(2).
A etiopatogenia e fisiopatologia da síndrome permanecem desconhecidas, sendo levantadas, até o momento, as hipóteses de menopausa induzida pela quimioterapia(6,7), suspensão do uso de esteróides(3), utilização da droga alquilante ciclofosfamida(2), ou alteração na regulação dos mecanismos de tolerância imunológica(3).
A primeira encontra-se em descrédito atualmente, após as descrições de Raderer(2) e Hilton(8,9), pois as pacientes já se encontravam em menopausa antes do aparecimento da síndrome, além de um caso descrito em homem por Michl(5).
A suspensão do uso de esteróides também tem sido desconsiderada em razão da pequena eficácia do uso de corticóides no tratamento do RPQ e reforçada pela descrição de Raderer(2), na qual a duração dos sintomas e o tempo de ocorrência da síndrome não estiveram relacionados com a administração profilática de dexametasona contra êmese.
Nos relatos anteriores a única droga do regime quimioterápico que teve participação em todos os casos foi a ciclofosfamida(2). Acreditava-se que essa droga poderia ter um papel fundamental no desencadeamento da síndrome. Porém, em nosso relato, a paciente portadora de linfoma de Hodgkin não foi tratada com essa medicação, o que contribui para afastar a possibilidade de haver uma especificidade de droga no desencadeamento do RPQ.
Mecanismos de tolerância imunológica são necessários como forma de impedir a reatividade contra constituintes próprios do organismo, dado que o sistema imune gera, ao acaso, uma enorme variedade de receptores antígeno-específicos dos quais alguns podem se tornar auto-reativos.
A tolerância pode ser induzida artificialmente através de protocolos terapêuticos como forma de prevenção de rejeição em transplantes ou no controle de doenças auto-imunes(10). Talvez a disfunção ocorra na recuperação do sistema imunológico per si na pós-quimioterapia. Trata-se de hipótese que deve ser comprovada com estudos futuros.
O relato de outras drogas induzindo o surgimento de distúrbios musculoesqueléticos também é raro, sendo descritos alguns casos de pacientes transplantados renais que fizeram uso de ciclosporina(13), tacrolimus(14) e micofenolato de mofetil(15); e possivelmente decorre de mecanismo etiopatogênico semelhante ao do RPQ.
Concluímos que o reumatismo pós-quimioterapia é uma síndrome benigna de duração variável, que surge de um a quatro meses após o término de esquema quimioterápico diverso, independente do tipo de câncer ou de seu tratamento, e constituída de mialgia e/ou poliartralgia simétrica em pequenas e grandes articulações, principalmente mãos (MCF e IFP), cotovelos, tornozelos e joelhos.
O tratamento é sintomático, visando ao alívio da dor musculoesquelética; geralmente a síndrome entra em remissão espontânea em até 12 meses.
Sua real incidência e fisiopatologia ainda necessitam de determinação; sugere-se um possível fator causal para o distúrbio no mecanismo de auto tolerância.
É um diagnóstico de exclusão, devendo-se afastar recidiva tumoral, metástases esqueléticas ou doenças reumatológicas inflamatórias.

REFERÊNCIAS
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2. Raderer M, Scheithauer W: Postchemotherapy rheumatism following adjuvant therapy for ovarian cancer. Scand J Rheumatol 23: 291-2, 1994.        [ Links ]
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15. Maes B, Oellerich M, Ceuppens JL, et al: A new acute inflammatory syndrome related to the introduction of mycophenolate mofetil in patients with Wegener's granulomatosis. Nephrol Dial Transp 17: 923-6, 2002.        [ Links ]


 Endereço para correspondência
Dr. Marcelo Cruz Rezende
Rua Barão do Rio Branco, 135, ap. 1.204, Vila Olga
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