domingo, 27 de julho de 2014

Crise, convite para a ação e um Manifesto Comunista



Crisis, invitation to action and a Communist Manifesto


Sadi Dal Rosso
Professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília – UnB (Brasil). E-mail: sadi@unb.br



RESUMO
A atual crise do capitalismo produziu, além da desorganização das economias, redução do crescimento econômico, falências de empresas, queima de valores incomensuráveis, desemprego, redução de salários, suicídios, e também efeitos de outra natureza: uma corrida atrás de autores de pensamento crítico. O filósofo Slavoj Žižek escreveu um texto no qual faz uma crítica radical ao liberalismo clássico e contemporâneo e retoma a utopia comunista. Se a democracia eleitoral constitui o instrumento pelo qual a burguesia preserva o controle sobre a sociedade, um evento revolucionário precisa criar meios pelos quais os sujeitos da revolução possam tornar real a noção de emancipação. Após efetuar a crítica da democracia por ser a "ditadura da burguesia", retoma a noção de ditadura do proletariado em seu lugar. Entretanto, para quem viveu mais de 20 anos sob a ditadura militar brasileira, essa questão está longe de ser satisfatoriamente resolvida, dado que ditadura é ditadura, independentemente do adjetivo que a acompanha.
Palavras-chave: Crise. Liberalismo. Comunismo. Democracia. Ditadura do proletariado.

ABSTRACT
Beyond the disorganization of economies, decrease in economic growth, bankruptcy of firms, fading of immense values, unemployment, wage losses, suicides and other impacts, the ongoing crisis of capitalism has produced a rally for authors of the critical thinking. The philosopher Slavoj Žižek wrote a text in which he makes a radical criticism to both classic and contemporary liberalism, retaking the communist utopia. If electoral democracy is the bourgeoisie's instrument for keeping control over society, a revolutionary move must create the means through which the subjects of the revolution may fulfill the emancipatory ideal. After the critique of western democracy, the author reintroduces the concept of dictatorship of the proletariat with emancipatory connotations. The question, anyway, is not satisfactorily resolved because dictatorship is a substantive idea that doesn't coincide with emancipation no matter the attributes it brings together.
Keywords: Crisis. Liberalism. Communism. Democracy. Dictatorship of the proletariat.



ŽIŽEK, Slavoj. First as tragedy, then as farce. London and New York: Verso, 2009.
O ano de 2008 está destinado a marcar época na história do capitalismo mundial. A crise financeira, econômica e social, então iniciada, projeta seus impactos negativos sobre as condições de vida das populações de países do mundo todo. Grécia e Irlanda tiveram que impor políticas econômicas extremamente duras a seus cidadãos, já que estavam em plena rota de não pagamento dos compromissos com as agências financiadoras, o que é impensável no sistema capitalista. O problema desses países, tradicionais integrantes da zona capitalista ocidental, expandiu-se também para as chamadas nações em transição do Leste Europeu. Os centros do capitalismo mundial – Estados Unidos, reconhecido como a economia em que primeiro estourou a crise, Europa e Japão – continuam com suas economias em ritmo de estagnação. Outros países do mundo capitalista – China, Índia, Brasil – também sofreram impactos significativos da crise, mas conseguiram reorganizar suas economias e, até o momento, retomaram ritmos de crescimento econômico, ainda que não se possa afirmar que estejam fora da zona de risco.
A crise de 2008 é um fato social. Qual é a interpretação que é feita dele? Percebe-se nítida divisão entre os intelectuais. Nos países em que a crise foi contornada rapidamente, os intelectuais conferem peso muito menor ao fenômeno da crise como ingrediente com capacidade para modificar de alguma maneira aspectos significativos da vida em sociedade. Assim, no Brasil, as ciências sociais conferem pouca importância aos impactos internos da crise. Neste momento, prevalece uma análise da crise segundo nações – o mundo dito globalizado é interpretado conforme reações locais e nacionais e não conforme o sentido de unidade mundial. O nível de emprego no Brasil foi afetado pela crise, mas como os postos de trabalho perdidos foram recuperados e o desemprego retomou a tendência de queda, o impacto do desemprego ficou secundarizado. Na economia, o problema cambial, decorrente de uma grande entrada de dólares no país, permanece como problema preocupante para a administração pública ao reduzir o espaço para as exportações, incentivar as importações e ampliar a dívida externa. Em campos de pesquisa, como a sociologia do trabalho, continuam sendo empregados os paradigmas da reestruturação produtiva, sem qualquer espaço de significado para a crise de 2008. Em reunião científica realizada em 2010, na cidade de Goiânia, na Universidade Federal de Goiás, de dez artigos sobre trabalho apresentados, nenhum sequer fazia referência a um possível impacto da crise sobre os referenciais teóricos e conceituais do trabalho. Os intelectuais brasileiros continuam impávidos em seus esquemas explicativos. A relação com a rápida superação da crise no Brasil está na raiz deste tipo de comportamento.
Como não poderia ser diferente, é dos países em que a crise perdura e age mais fortemente que provêm as contribuições mais relevantes para sua análise. Isso envolve tanto teóricos mais convencionais, como é o caso de economistas norte-americanos, tais como Joseph Stiglitz e Paul Krugman, quanto em relação a intelectuais de esquerda. No campo da esquerda, situa-se Slavoj Žižek , cujo livro First as tragedy, then as farce será objeto de análise.
O ano de 1989, quando iniciou a queda do Muro de Berlim e de outros tantos lugares onde não existiam muros físicos e sim políticos, e quando aconteceu o evento da Praça Tiananmen, é identificado com (ou 'como'?) o fim do socialismo realmente existente e com (ou 'como'?) o fim da divisão do mundo em dois grandes blocos, o capitalista e o comunista. O ano de 1989 representa o início de um doloroso processo de conversão de inúmeros intelectuais da esquerda como novos aliados do mainstream dos campos científicos e para o campo das políticas de centro ou liberais, dos quais eram críticos ferrenhos até a véspera. Conversões no campo religioso e das ideias políticas e sociais são processos que envolvem sofrimento psíquico enorme, por implicarem na mudança dos campos de ideias. É uma dilaceração do indivíduo com seu passado. É uma ruptura consigo mesmo, do presente com seu passado imediato. O caso do apóstolo Paulo, narrado na Bíblia, é protótipo da generalidade desse processo e de sua profundidade no campo religioso. De torturador dos cristãos, converteu-se em perseguido, em torturado. Nessa conversão, passou por uma cegueira inexplicável, tal o estado de confusão mental. A visão divina que recebeu é a forma de explicar a conversão, de conferir razão e significado ao ato. Do campo religioso, a conversão pode ser estendida para o campo político e social, sendo que a intensidade do sofrimento não é menor, especialmente quando implica em transitar de um campo de ideias e valores políticos para outro.
Se 1989 representou o processo de conversão política de muitos intelectuais da esquerda para o centro ou para a direita, iluminados ou não por visões divinas, 2008 exerce papel inverso. Criou grande expectativa no campo da esquerda. Ou seja, o capitalismo entrou em uma crise decorrente de sua própria política de corte neoliberal. A crise neoliberal do capitalismo encheu de esperanças a esquerda e provocou entre os jovens e os inquietos a busca de explicações para o fato. Toda uma literatura de esquerda que estava condenada aos depósitos das bibliotecas voltou a ser relida na busca de explicações e caminhos. Repito: explicações e caminhos.
First as tragedy, then as farce é um livro que busca apresentar caminhos, fazer um convite e tecer interpretações. Está organizado em duas grandes partes. Uma primeira, em que Žižek interpreta a crise do capitalismo nos Estados Unidos e na Europa, concentrando-se no poder de construçăo e desconstrução dos discursos ideológicos. A segunda parte busca encontrar interpretações para novos caminhos e novas alternativas.
A crise do capitalismo é deflagrada por dois fatos marcantes, segundo Slavoj Žižek: o ataque e a destruiçăo das Torres Gêmeas em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001, e a crise de 2008. Os fatos são situados apenas como contexto para a real intenção do autor, que consiste em realizar uma crítica implacável à produção de ideologia. O papel da ideologia é construir discursos que fornecem interpretação aos fatos. Os fatos não são mais os fatos acontecidos e, sim, os fatos narrados e interpretados segundo os construtores dos discursos ideológicos. Os fatos perdem suas existências próprias, suas naturezas. Prevalecem os discursos, as construções elaboradas, as interpretações apresentadas. Sua verdadeira realidade fica escondida e escapa aos olhos do espectador desavisado. Os discursos elaborados formam fetiches da realidade.
Decorre daí uma extrema dificuldade de captar o sentido escondido atrás da aparência das coisas. A ideologia detém este poder imenso de esconder o cerne e o núcleo dos fatos e de transformar sua interpretação conforme os interesses dos elaboradores dos discursos. A ideologia alcança bem além das funções de ocultamento, mistificação e transformação, como se depreende da capacidade de convencimento dos discursos universalizantes de situações particulares. Apesar das dificuldades, o discurso ideológico pode ser confrontado e desmontado, permitindo fazer aflorar e chegar à superfície os sentidos ocultados. Instrumentos desconstrutivos e reconstrutivos dos discursos possibilitam capturar as verdadeiras questões em jogo e os movimentos de ocultamento empregados por esse jogo.
S. Žižek năo faz apenas uma interpretação da crise e seu ocultamento. Seu interesse é bem mais amplo. Ele pretende atingir os fundamentos do liberalismo ocidental, desvelar como o liberalismo mina os próprios valores que criou e como termina gerando seu contrário: o fundamentalismo.
Liberalism and fundamentalism form a totality for their opposition is structured so that liberalism itself generates its opposite. ... Liberalism is parasitic. In the course of its development it undermines the values it created. ... There is something missing in the liberal edifice ... Fundamentalism is a mystificatory reaction against a flaw inherent within liberalism. Fundamentalism is generated by liberalism. ... Left to itself liberalism slowly undermines itself. (Žižek, 2009, p. 76)
A argumentação contra os fundamentos do liberalismo prepara o terreno para a segunda parte do livro, na qual são retomadas propostas alternativas. Antes de entrar nesse ponto, julgo conveniente apontar para a diversidade de interpretações em relação à crise de derretimento do capitalismo, iniciada em 2008. Žižek opera com a ideia de que as atividades imateriais distinguem-se das atividades materiais e que esta conceituação é um elemento central para entender a crise de 2008. A extração da mais-valia é possível de ser realizada sob condições de produção das mercadorias, mediante a exploração e a superexploração do trabalho. Esse mecanismo é conhecido como exploração econômica. Na sociedade contemporânea, entretanto, nem todas as atividades são suscetíveis de exploração econômica. Para gerar excedente acumulável, as atividades imateriais exigem a constituição de um outro mecanismo de expropriação do cidadão, o direito de cobrar taxas pelo uso de serviços. A cobrança de taxas para usar um programa de computador é uma realidade econômica e social inteiramente diferente da exploração da mais-valia do trabalhador. Com base em Toni Negri, Lazaratto e colegas italianos que já escreveram sobre trabalho imaterial e seu significado, Žižek utiliza a expressăo de capitalismo rentista (em inglês, rent capitalism) para designar esta parte da acumulação, que requer intervenção do Estado e de seus aparatos para que se estabeleçam as condições de exploração rentista. Žižek interpreta a atual crise financeira mundial como decorręncia da operação deste capitalismo rentista. A crise de 2008 foi apenas um segundo momento da crise da chamada "bolha da informática".
A relevância do tema do trabalho imaterial está presente em autores marxistas e não marxistas. Joseph E. Stiglitz, economista que investiu enorme esforço intelectual em levantar propostas políticas que fizessem a globalização funcionar, reconhece o papel negativo dos direitos de patentes para a eficiência econômica. Patentes são direitos outorgados pelo Estado e suas agências em razão do princípio da propriedade intelectual. A propriedade intelectual é diferente das propriedades comuns. A propriedade intelectual cria monopólio, enquanto a propriedade de uma casa não implica direitos sobre todas as casas. E mais: cria monopólio sobre bens comuns, serviços coletivos.
Economic efficiency means that knowledge should be made freely available, but the intellectual property regime is intended to restrict usage ... (Another difference). To define the boundaries of a land is easy, of intellectual property is far more difficult. ... Defining what is patentable is difficult. One criterion: the invention has to be new. But what is original? Almost every idea is based on previous ideas. ... There is no obvious answer to these questions. ... At least part of what is being patented, and therefore privatized, is knowledge that previously existed – part of common knowledge, or at least the common knowledge of experts in the area. And yet, once the patent has been granted, the owner can charge others for using that knowledge (Stiglitz, 2006, p. 108-9)
Stiglitz alarga o espaço de análise, passando da produção imaterial para todas as atividades sujeitas à propriedade intelectual. Seu argumento fundamental consiste em que o direito de monopólio irrestrito, com base no fundamento da propriedade intelectual, envolve ineficiência econômica, por subtrair as esferas de monopólio ao mecanismo da competição intercapitalista.
Outros autores procuram oferecer explicações para a crise do capitalismo iniciada em 2008. Paul Krugman apresenta uma interpretação, por meio da proposição de que o sistema financeiro pode ser dividido em duas grandes partes: uma primeira compreenderia o sistema bancário e, genericamente, todo o sistema financeiro que opera sob a égide da regulamentação; a segunda parte, ele designa pelo termo de shadow banking system, aqueles segmentos do setor financeiro que operam nas áreas de sombra do sistema capitalista, a saber, o setor não regulamentado pelas agências nacionais e internacionais. O shadow banking system não opera completamente fora de um sistema de regras. Essas são estabelecidas pelos próprios agentes econômicos, conforme o princípio da liberdade econômica. O capitalismo entrou em crise em função da falta de regulamentação, advoga o economista neo-keynesiano. Esse esquema conceitual não significa que Krugman minimiza o tamanho da crise na qual o capitalismo entrou. Muito ao contrário. Afirma que é uma crise estrutural que vinha longamente se preparando, com manifestações nas periferias do sistema – Brasil, México, Argentina, Rússia, Sudeste Asiático – e, desta vez, explodiu no seu epicentro. Primeiro, dizimou a periferia, depois, abalou o centro do Império.
Em 2010, Leo Panitch e Sam Gindin propõem uma explanação da crise com base em uma interpretação do capitalismo predominantemente financeirizado – conceito que apresentam para indicar o lugar de destaque do sistema financeiro no conjunto da economia, mas sem esquecer os vínculos que as finanças constroem com os demais setores de atividade econômica.
The term captures the greater mobility of financial capital across sectors, space and time which during these decades greatly intensified domestic and international competition at the same time as it brought a much greater degree of financial volatility. ... While the phenomenal growth of financial markets since the 1980s led to over-leveraging and excessive risk-taking, this was tolerated and in fact encouraged for reasons that went far beyond the competitive dynamics and power of finance itself. It was accepted because it had become not only functional to, but also essential for, the domestic and global expansion of the capital involved in producing goods and nonfinancial services.(Panitch and Gindim, 2010, p. 9-10)
Os autores enfatizam a importância do sistema financeiro e veem nas hipotecas habitacionais, que realizam a vinculação entre o sistema financeiro e a classe trabalhadora, e nos sistemas de securitização os pontos críticos de ruptura do sistema. Para que estourasse a crise, era necessário existir uma convicção dos agentes econômicos domésticos e globais de que o Estado não deixaria o sistema estourar ou, como Žižek e outros autores denominam, “derreter” (meltdown). Tal convicção não se manteve, e o derretimento generalizou-se, dos Estados Unidos para todos os cantos do planeta, transformando esta crise na primeira crise global do capitalismo.
Independentemente das interpretações causais e das descrições conjunturais, a crise do sistema de acumulação capitalista continua presente nas realidades dos diversos países. Ora, por envolver uma interrupção do processo de acumulação de capital e de crescimento econômico (Panitch e Gindin, 2010, p. 4), constituindo um momento de reorganização das atividades e das instituições, a crise representa uma ocasião para buscar alternativas, sejam de políticas, sejam de interpretações dos fatos. Por essa razão, viu-se, a partir de 2008, uma corrida para autores da esquerda crítica, muitos deles defenestrados e supostamente enterrados em 1989, com o evento da queda do Muro de Berlim. Pois, eis que o sistema, em sua estruturação neoliberal, abre-se em enorme crise, sem que marxistas de quaisquer gêneros, anarquistas, pensadores dos diversos tipos de movimentos sociais contemporâneos e ativistas sociais sejam responsáveis pela deflagração do evento. As imagens de derretimento e de explosão são suficientemente fortes para expressar a origem interna às políticas neoliberais como responsáveis pelo evento que colocou em tensão o mundo capitalista todo, bem como suas margens, representadas pelas atividades não capitalistas. Veja-se a evolução das ideias e das propostas do cineasta Michael Moore, um grande crítico social. No filme The Corporation, Moore conclui com o que poderia ser entendido como uma chamada a favor do capitalismo verde. Já no seu último filme, Capitalism A Love Story, entretanto, começa a flertar com a Hipótese Comunista. Jovens inquietos são outro grupo vorazmente atrás de literatura, ideias e propostas críticas.
A segunda parte do livro de Žižek contém um Manifesto Comunista aos Dias de Hoje. Escrito por Marx e Engels há mais de 160 anos, em 1848, o Manifesto Comunista ganha uma nova versão no limiar do século XXI, razão para uma análise crítica. O autor intitula a segunda parte do livro como "A Hipótese Comunista", buscando amparo em uma expressão própria do mundo acadêmico e das pesquisas. A crítica ao liberalismo e à ideologia por ele engendrada abre caminho para que seja possível pensar em uma hipótese comunista. O caminho trilhado não é o da descrição do evento do derretimento de 2008, mas o de um trabalho próprio do filósofo, de crítica aos conteúdos internos do liberalismo vigente. O autor busca, ainda, construir a ideia comunista como elemento de validade universal, no sentido de universalidade própria do argumento hegeliano em "A Filosofia da História". O comunismo é uma Ideia Eterna (Žižek, 2009, p. 88).
Žižek fundamenta esta Ideia Eterna do comunismo tomando como base o princípio dos bens comuns (em inglęs,commons), que existiram e existem no curso da história universal. Os bens comuns, que são coletivos, estão presentes na sociedade contemporânea, na produção intelectual e, mais genericamente, na produção imaterial. Acontece que os bens comuns imateriais são sujeitos a processos de privatização, pelo qual se tornam bens privados, serviços privados, com o que contribuem com o processo de acumulação, dado que os proprietários beneficiam-se de poderes de monopólio ou de direitos especiais. Nesse caso, que vem acontecendo por meio dos sistemas de patentes, bem como pela propriedade intelectual em geral, o potencial coletivo dos commons é submetido ao controle privado. A crítica à privatização dos bens comuns é feita, vale repetir, não somente pelos autores de esquerda, como também por intelectuais que pertencem ao mainstream da economia. De Žižek e Negri a Stiglitz.
Na análise de Žižek o capitalismo global contém em seu interior quatro antagonismos, razăo pela qual fica sujeito a crises e é passível de mudança de sistema: 1) ameaça de catástrofe ecológica; 2) impropriedade da noção de propriedade privada em relação à assim dita propriedade intelectual; 3) implicações ético-sociais dos novos desenvolvimentos tecnocientíficos, especialmente em biogenética; 4) a criação de novas formas de apartheid, novos muros e favelas (Žižek, 2009: 91). Segundo ele, os tręs primeiros antagonismos poderiam ser solucionados dentro do sistema capitalista. O quarto, entretanto, que compreende a possibilidade de 'igualdade substantiva' na expressão de Mészáros, só pode ser solucionado para além do horizonte dominado pela classe burguesa.
Por isso, o autor recupera a ideia de revolução. Se uma primeira tentativa (a Revolução de Outubro) resultou em falência, há que recomeçar tudo de novo, do ponto zero. I claim that the Communist Idea persists! Try again, try again! (Žižek, 2009, p. 125). A questão da democracia e da ditadura do proletariado requer análise. Retomando a crítica feita ao liberalismo, Žižek afirma que a democracia eleitoral năo vai além de uma ditadura da burguesia. Consequentemente, impede que antagonismos, tais quais a prevalência de desigualdades que esgarçam o tecido social, sejam solucionados. E mais: seguindo o argumento de Platão, escreve que a democracia, pelas negociações que propicia, exclui a Virtude. In democracy, in the sense of the representation of and negotiation between a plurality of private interests, there is no place for VIRTUE (Žižek, 2009, p. 137). Nos tempos de dominaçăo burguesa, a democracia e as eleições são mecanismos que confirmam a hegemonia desta classe e retêm a ordem burguesa. Representative democracy in its very notion involves a passivization of the popular Will(Žižek, 2009, p. 135). Passivaçăo da vontade, negociação de interesses, exclusão da virtude, ditadura da burguesia são críticas fortes à noção de democracia. Tal interpretação diverge daquela outra, segundo a qual a democracia ocidental constitui avanço conquistado pelas classes trabalhadoras através de suas lutas. Portanto, um valor a ser preservado.
Žižek retoma, em lugar da democracia, a clássica proposta da ditadura do proletariado, no sentido moderno e contemporâneo do termo. The dictatorship of the proletariat is a kind of necessary oxymoron, not a state form in which proletariat is now the ruling class ... when the state itself is radically transformed relying on new forms of popular participation (Žižek, 2009, p. 131). A ditadura do proletariado de que fala Žižek passaria pela invençăo de novas formas de participação e organização. To replace statal forms of organization with direct non-representative forms of self organization (councils). ... To make the state itself to work in a non-statal mode. ... Lenin: the goal of revolutionary violence is not take power on the state but to transform it. (Žižek, 2009, p. 130). Sua necessidade provém do fato de que, ao se produzir, A Grande Transformação é necessária para que os adversários sejam contidos e não retornem ao poder. Que a ditadura do proletariado seja o instrumento da construção da emancipação, eis A GRANDE QUESTÃO. Ditadura, uma vez instalada, se reproduz somente como ditadura, não como participação e capacidade de decisão. Portanto, não realiza the communist-egalitarian emancipatory Idea (Žižek, 2009, p. 99) pretendida por Žižek. A transformaçăo da ditadura, qualquer que seja, passa por seu fim. Reinventar conceitos e categorias para pensar emancipação, participação, capacidade de decisão e questões políticas semelhantes, ainda é preciso.

Referências
PANITCH, Leo; GINDIN, Sam. The Crisis This Time. London: Merlin Press; New York: Monthly Review Press; Halifax: Fernwood, 2010.         [ Links ]
STIGLITZ, Joseph E. Making Globalization Work. New York: Norton, 2006.         [ Links ]
ŽIŽEK, Slavoj. First as Tragedy, then as Farce. London and New York: Verso, 2009.         [ Links ]


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