quinta-feira, 29 de maio de 2014

Micoses sistêmicas: fatores associados ao óbito em pacientes com infecção pelo vírus da imunodeficiência humana, Cuiabá, Estado de Mato Grosso, 2005-2008



Systemic mycosis: factors associated with death among patients infected with the human immunodeficiency virus, Cuiabá, State of Mato Grosso, Brazil, 2005-2008


Luciano Correa RibeiroI; Rosane Christine HahnI, II, III; Olivia Cometi FavalessaI; Tomoko TadanoI; Cor Jesus Fernandes FontesI, II
IHospital Universitário Júlio Müller, Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, MT
IIAssociação Mato-Grossense Para Estudo das Endemias Tropicais, Cuiabá, MT
IIIHospital Geral Universitário, Universidade de Cuiabá, Cuiabá, MT



RESUMO
A prevalência de micose sistêmica entre 1.300 pacientes portadores de HIV/Aids de Cuiabá, Mato Grosso foi de 4,6%, no período de 2005-2008. As espécies de fungos isoladas foram o Cryptococcus neoformans (50%),Cryptococcus gattii (1,6%), Cryptococcus spp (6,6%), Histoplasma capsulatum (38,3%) e Paracoccidioides brasiliensis (3,3%). Óbito foi registrado em 32 (53,3%) pacientes, sendo a criptococose a principal causa. A contagem de linfócitos T CD4+ foi baixa e semelhante entre os pacientes que sobreviveram ou faleceram por micose sistêmica. O etilismo (OR:8,2; IC95%: 1,4-62,1; p=0,005) e o nível médio de desidrogenase lática [758 (182) U/L vs 416 (268) U/L; p<0,001] foram as características independentemente associadas ao óbito dos pacientes do estudo. Os resultados mostram alta letalidade por micoses sistêmicas em pacientes portadores de HIV/Aids de Cuiabá e sugerem que características clínico-laboratoriais tais como o etilismo e a elevação precoce da desidrogenase lática podem ser fatores relacionados ao pior prognóstico nessas condições.
Palavras-chaves: Vírus da imunodeficiência humana. Micoses sistêmicas. Letalidade.

ABSTRACT
Between 2005 and 2008, the prevalence of systemic mycosis among 1,300 HIV/AIDS patients in Cuiabá, Mato Grosso, was 4.6%. The fungus species isolated were Cryptococcus neoformans in 50%, Cryptococcus gattii in 1.6%, Cryptococcus spp in 6.6%, Histoplasma capsulatum in 38.3% and Paracoccidioides brasiliensis in 3.3%. Death was recorded in the cases of 32 patients (53.3%), and cryptococcosis was the main cause. The CD4+ T lymphocyte count was low and similar among patients who survived or died due to systemic mycosis. The factors independently associated with the deaths of these patients were alcoholism (OR: 8.2; 95% CI: 1.4-62.1; p = 0005) and the mean level of lactate dehydrogenase [758 (182) U/l vs. 416 (268) U/l; p < 0001]. The findings showed that systemic mycosis was highly lethal among the patients with HIV/AIDS in Cuiabá and suggested that clinical-laboratory characteristics such as alcoholism and early elevation of lactate dehydrogenase may be factors relating to worse prognosis under these conditions.
Key-words: Human immunodeficiency virus. Systemic mycosis. Lethality.



Mesmo com a queda progressiva da incidência de infecções oportunistas, após o advento da moderna terapia antirretroviral potente ou high activity antiretroviral therapy (HAART)17, estas complicações ainda constituem a principal causa de morbidade e mortalidade para a população portadora do vírus da imunodeficiência humana (Aids) resultando muitas vezes em hospitalização, e requerendo, em algumas situações, tratamentos dispendiosos e muito tóxicos, podendo resultar em encurtamento da sobrevida destes pacientes5.
Apesar da tuberculose representar ainda a principal complicação oportunista, com crescimento exponencial significativo, também, é crescente a incidência de infecção fúngica invasiva em determinadas populações, como no sudoeste asiático e outros países em desenvolvimento, em decorrência do elevado grau de imunossupressão6 36. Shen e cols37 relataram que os pacientes portadores do HIV podem apresentar uma variedade de infecções fúngicas no decorrer de sua trajetória, com aumento significativo do número de casos, ocasionando uma elevada letalidade, já que o diagnóstico precoce é difícil devido sintomatologia clínica pouco específica.
O objetivo deste estudo foi identificar fatores associados ao óbito causado por micoses sistêmicas em pacientes com HIV/Aids que receberam tratamento nas unidades especializadas para assistência ao portador de HIV/Aids de Cuiabá, Mato Grosso, 2005-2008.

PACIENTES E MÉTODOS
Estudo epidemiológico de corte transversal, cujas informações foram obtidas da análise de prontuários de pacientes acompanhados nas unidades especializadas para assistência ao portador de HIV/Aids, de Cuiabá, Mato Grosso, 2005-2008. Foram levantados os dados dos prontuários que continham as informações sobre o acompanhamento clínico do paciente, tanto em sua fase hospitalar quanto ambulatorial de assistência, nos seguintes hospitais: Hospital Pronto Socorro Municipal de Cuiabá, Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá, Hospital Geral Universitário e Hospital Universitário Júlio Muller.
Para identificar fatores associados ao óbito dos pacientes com micose sistêmica, associada ao HIV/Aids, foram priorizados os seguintes dados clínicos: principais sinais e sintomas, registro ou evidência, no prontuário, de infecção fúngica prévia ou de uso prévio de antifúngicos após o diagnóstico de Aids e presença de outras infecções oportunistas associadas. Informações epidemiológicas e demográficas tais como escolaridade, idade, sexo e hábito de usar fumo e álcool também foram registradas. Foram classificados como etilistas e tabagistas os pacientes cujos registros de prontuários constavam qualquer menção a esses hábitos.
Na avaliação laboratorial, foram coletados dados hematológicos, bioquímicos, contagem de linfócitos CD4+ e carga viral, no momento da internação. As seguintes variáveis categóricas relacionadas aos resultados observados nos exames laboratoriais foram definidas: anemia, se a concentração de hemoglobina foi inferior a 10g/dL; insuficiência renal, se o nível sérico de uréia foi superior a 50mg/dL; hipoalbuminemia, se a albumina sérica foi inferior a 3g/dL; enzimas hepáticas elevadas, se o valor da aspartato-aminotransferase (AST) ou alanina-aminotransferase (ALT) foi superior a 40U/L; desidrogenase lática elevada, se a DHL foi superior a 400U/L. A carga viral do HIV foi avaliada pelo logaritmo (base 10) do número de cópias de DNA constatado.
O diagnóstico da infecção fúngica de todos pacientes do estudo foi feito no laboratório de microbiologia da instituição onde esteve hospitalizado. A discriminação específica dos microorganismos de interesse no estudo foi realizada no Laboratório de Micologia da Faculdade de Ciências Médicas/Universidade Federal do Mato Grosso. As técnicas utilizadas para essa identificação foram o exame micológico direto, a coloração pela tinta Nanquim, para identificação de Cryptococcus sp, cultura com meios de Sabouraud dextrose, Mycosel ou Fava-Netto e a realização de provas específicas, objetivando a distinção entre as espécies Cryptococcus neoformans eCryptococcus gattii. Para o presente estudo, classificou-se como portador de micose sistêmica todo paciente cujo diagnóstico etiológico de sua infecção oportunista foi concluído como criptococose, histoplasmose e paracoccidioidomicose.
Para avaliar a força de associação entre variáveis categóricas associadas ao óbito, foram determinados a razão de chances (odds ratio) e respectivo intervalo de confiança (IC95%). Diferenças observadas entre proporções foram analisadas pelo teste de qui-quadrado com correção de Yates ou pelo teste de Fisher. Para análise das variáveis contínuas, associadas ao óbito, valeu-se da comparação da média e desvio padrão de cada grupo, utilizando-se o teste t de Student. Para todas essas análises, foi considerado o nível de significância de 95%. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Hospital Universitário Júlio Muller (HUJM), pelo Parecer nº 226/CEP-HUJM/2005.
Todas as variáveis que mostraram associação em análise univariada, com probabilidade de erro alfa inferior 0,1, foram posteriormente incluídas em modelo de regressão logística multivariada, para determinar os fatores independentemente associados ao óbito, utilizando o programa Stata, versão 8.0.

RESULTADOS
Foram avaliados os prontuários de 1.300 pacientes inscritos nas unidades especializadas para assistência ao portador de HIV/Aids de Cuiabá, Mato Grosso, no período de 2005-2008, sendo possível identificar infecção fúngica (de qualquer natureza) em 175 (13,5%; IC95%: 11,7%-15,5%) pacientes. Micose sistêmica foi constatada em 60 (34,3%; IC95%: 27,4%-41,9%) desses pacientes, sendo 37 (61,7%) do sexo masculino e 23 (38,3%) do sexo feminino, numa razão masculino: feminino de 1,6:1. A idade desses pacientes variou de 11 a 59 anos, com média (DP) de 36,5 (9,7) anos. Destacaram-se pacientes com mais de 30 dias de início de sintomas (67,2%), baixo nível de escolaridade (85,6%), referindo uso frequente de bebidas alcoólicas (67,3%) e hábito de fumar cigarros (74,5%). Infecção fúngica pregressa e uso anterior de medicamentos com ação antifúngica foram encontrados nos prontuários de 17 (30,4%) e 16 (28,6%) pacientes, respectivamente (Tabela 1). Dados clínicos, de interesse para o estudo, foram anotados de 56 prontuários dos 60 pacientes com micose sistêmica. Os principais sinais e sintomas referidos por esses pacientes, quando do diagnóstico da micose sistêmica foram, em geral, inespecíficos. Predominaram os achados de fraqueza muscular, febre, palidez cutânea, emagrecimento, adenomegalia, cefaléia e confusão mental.


As alterações laboratoriais encontradas por ocasião do diagnóstico da micose sistêmica confirmaram anemia, plaquetopenia e hipoalbuminemia, atestadas pelos achados (média±DP) de hemoglobina de 9,3±2,6g/dL, hematócrito de 27,5%±7,1%, contagem de plaquetas de 170.145±117.602/mm3 e albumina sérica de 2,8±0,7g/dL. Os níveis séricos médios (DP) das enzimas aspartato aminotransferase, alanina aminotransferase, desidrogenase láctica e fosfatase alcalina foram 101,7 (122,3) U/L, 50,4 (39,4) U/L, 560,3 (287,9) U/L e 232,5 (218,1) U/L, respectivamente. Evidência importante de imunodepressão foi constatada pelo baixo nível de linfócitos T CD4 (media±DP de 82,3±85,2 células) e alta carga viral (média±DP de 1.054.016±1.787.576 cópias/mL) (Tabela 2).


A positividade da investigação micológica dos 60 pacientes do estudo foi demonstrada em espécimes clínicos de 56 (93,3%) exames micológicos diretos, 53 (88,3%) culturas e 7 (11,6%) exames anatomopatológicos. Em vários deles, a micose foi confirmada em mais de um sítio anatômico. Os principais sítios anatômicos onde foram isolados os fungos causadores da micose sistêmica diagnosticada nesses pacientes foram líquido cefalorraquidiano (56,7%), medula óssea (30%), pulmão (13,3%) e boca (11,7%). A hemocultura e a urinocultura foram úteis para a confirmação da infecção fúngica em 8 (13,3%) e 4 (6,7%) dos 53 pacientes com cultura positiva, respectivamente. Dos fungos isolados no sangue, dois foram agentes causadores de histoplasmose e seis de criptococose. As espécies de fungos isoladas nos 60 pacientes do estudo estão apresentadas na Tabela 3.


Evolução para alta ou óbito foi registrada em 24 (40%) e 32 (53,3%) pacientes, respectivamente. De 4 (6,7%) pacientes, não foi possível levantar observação quando ao desfecho evolutivo da micose sistêmica. Entre 37 pacientes, que tinham informação sobre etilismo referida no prontuário, 20 (54,1%) evoluíram para óbito durante o tratamento da micose sistêmica. Entre 16 pacientes que não referiram uso de bebidas alcoólicas, apenas 2 (12,5%) foram a óbito. A probabilidade de etilismo foi maior e estatisticamente significante, entre os pacientes que evoluíram para óbito (OR:8,2; IC95%: 1,4-62,1; p=0,005). Outras infecções concomitantes, tais como tuberculose (p=0,47), pneumocistose (p=0,08) e neurotoxoplasmose (p=0,78), não se associaram à evolução letal desses pacientes. Da mesma forma, as demais variáveis clínicas e demográficas levantadas dos pacientes também não apresentaram associação com o óbito causado por micose sistêmica, nesses pacientes (Tabela 4).
Algumas características laboratoriais destacaram-se entre os pacientes que evoluíram para o óbito. Nível médio (DP) de albumina sérica foi menor e estatisticamente significante, entre os pacientes que faleceram, quando comparado com os sobreviventes [2,5 (0,6) g/dL vs 3,1 (0,6) g/dL; p < 0,001]. A concentração média (DP) da uréia foi de 60,1 (42,1) mg/dL no soro dos pacientes que faleceram e de 36,8 (15,5) mg/dL (p=0,006). Maior nível médio de DHL foi observado no grupo dos pacientes que evoluíram para o óbito [758 (182) U/L vs416 (268) U/L; p<0,001]. Embora a proporção de isolamento de fungos em hemocultura tenha sido maior (5/32 x 3/24), entre os pacientes que evoluíram para óbito, a diferença observada não foi estatisticamente significante (Tabela 5).
Os dois parâmetros laboratoriais que são indicadores da agressão ao sistema imune pelo HIV, isto é, a carga viral e a contagem de linfócitos T CD4+ mostraram comportamento de doença avançada, tanto no grupo sobrevivente, quanto no grupo que evoluiu para o óbito. No entanto, entre os pacientes que faleceram, a carga viral do HIV (média: 12,4 log; DP: 3,6 log cópias/mL) foi maior (p=0,01), quando comparada aos valores observados entre os sobreviventes (média: 9,3 log; DP: 3,7 log cópias/mL). Para a contagem dos linfócitos T CD4+, a diferença observada entre os grupos não foi estatisticamente significante (p=0,71). Os demais parâmetros laboratoriais avaliados, não apresentaram associação com a evolução da micose sistêmica para o óbito (Tabela 5).
Para avaliar possível efeito de confundimento na associação observada, entre a evolução letal da micose e relato de etilismo, concomitância de pneumocistose, na ocasião do diagnóstico da micose sistêmica, anemia, hipoalbuminemia, insuficiência renal, elevação da DHL sérica e elevação das enzimas hepáticas, um modelo de regressão logística multivariada foi construído, incluindo-se manualmente as variáveis que apresentaram associação na análise univariada. Em virtude do baixo número de pacientes com informação disponível no prontuário, sobre a carga viral de HIV no momento da admissão, essa variável não pode ser incluída no modelo. Além das variáveis descritas neste parágrafo, incluíram-se também no modelo a idade e a contagem de linfócitos T CD4+ dos pacientes, em virtude de naturalmente estarem relacionadas à pior evolução clínica. Permaneceram independentemente associadas ao óbito apenas o relato de etilismo e a DHL elevada, acima de 400U/L (Tabela 6).

DISCUSSÃO
No presente estudo, a prevalência (IC95%) encontrada de micose sistêmica entre pacientes com HIV/Aids acompanhados nas unidades especializadas, para assistência ao portador de HIV/Aids de Cuiabá, Mato Grosso, no período de 2005-2008, foi de 4,6% (3,6%-5,9%), excluindo-se o diagnóstico de pneumocistose, causada porPneumocystis jiroveci, recentemente classificado como fungo39. Essa exclusão foi necessária, em virtude da dificuldade de confirmação diagnóstica da pneumocistose em nosso meio.
Em geral, foram pacientes que procuraram o serviço de saúde com mais de 30 dias de sintomas, adultos jovens e com maior proporção do sexo masculino, provavelmente, explicada pela ainda maior proporção de Aids entre homens no Estado de Mato Grosso21, quando comparada à relatada para o Brasil, hoje com razão de sexo próxima de 1:11 21 25. Destacou-se o baixo nível de escolaridade desses pacientes, o que certamente está relacionado à presença da doença nas camadas menos favorecidas da população. Esse perfil não é diferente da distribuição da Aids observada no Brasil, que vem mostrando progressiva tendência à pauperização da epidemia na ultima década1 21. Ainda como reflexo da pauperização da epidemia, encontrou-se alta proporção de pacientes com relato de etilismo e/ou tabagismo na amostra estudada, já descrita para a população brasileira de classe menos favorecida, economicamente10 27.
A evolução letal nesse grupo de pacientes deve ser considerada elevada (40%) e pode ter sido consequência de diversos fatores. Por exemplo, o relato de infecção fúngica no passado foi constatado para importante parcela dos pacientes, o que motivou uso prévio de antifúngico sistêmico e suas consequências. Essa pressão exercida pela droga sobre o fungo poderia explicar a ocorrência de quadros mais graves da micose sistêmica, como já demonstraram outros autores, que observaram pacientes com candidíase oral e criptococose resistente ao fluconazol22 34. Além disso, no momento do diagnóstico da micose sistêmica dos pacientes do estudo, outras infecções oportunistas e potencialmente graves também foram diagnosticadas nesse grupo de pacientes, tais como a pneumocistose, a tuberculose e a neurotoxoplasmose. Jain e cols15 relataram que, apesar da queda progressiva do número de mortes devido à Aids na era pós-TARV-P, a pneumocistose ainda permanece como a principal causa de mortalidade. Por sua vez, Santo cols35, avaliando causas de morte relacionadas à tuberculose no sistema de informação de mortalidade de São Paulo, concluíram que menções ao termo tuberculose praticamente dobram o coeficiente de mortalidade proporcional por essa causa e são diretamente relacionadas à epidemia do HIV/Aids daquele estado.
Os principais sinais e sintomas apresentados pelos pacientes do estudo foram compatíveis com as micoses sistêmicas diagnosticadas e estão de acordo com os observados por outros autores12 24 40. Alguns dos sinais e sintomas observados no estudo reforçam a hipótese de outras infecções oportunistas em concomitância com a micose sistêmica, tais como as convulsões na neurotoxoplasmose/neurocriptococose e a tosse seca e dispnéia na pneumocistose. Lamentavelmente, a confirmação etiológica dessas infecções não pôde ser documentada neste estudo, impedindo a mensuração de seu impacto nos resultados observados.
Embora não se possa afastar a influência da tuberculose, pneumocistose e neurotoxoplasmose na evolução fatal dos pacientes deste estudo, o achado de alta (40%) letalidade das micoses sistêmicas não é inconsistente com a literatura. Em Cuba, por exemplo, de 211 autópsias realizadas em pacientes que faleceram de Hiv/Aids, a causa mortis foi atribuída às infecções fúngicas em 44,1% deles13.
Os achados laboratoriais de anemia, hipoalbuminemia, insuficiência renal e elevação das enzimas hepáticas e DHL estão de acordo com os descritos por outros autores8 36 42 que também descreveram quadro laboratorial semelhante e indicam fase avançada da imunossupressão, que predispõe à evolução mais agressiva da infecção. De fato, todos os pacientes do estudo encontravam-se em fase adiantada da doença, atestada pela baixa contagem de linfócitos T CD4+.
Observou-se excelente performance das técnicas laboratoriais empregadas para a confirmação diagnóstica da micose sistêmica, principalmente do exame micológico direto e da cultura para fungos. Pappalardo29, avaliando 35 pacientes com Aids e criptococose, demonstrou alta (90%) sensibilidade do exame direto. Sensibilidade de 100% dessa técnica também foi registrada por Goldani & Sugar11, em revisão de 27 casos de paracoccidioidomicose na Aids. Aspecto curioso do presente estudo foi o achado de hemoculturas positivas em 8 (13,3%) pacientes com micose sistêmica. Esse aspecto tem sido associado a pior prognóstico da criptococose31 38 e histoplasmose28. Também, para a paracoccidioidomicose, há relato de sepse grave seguida de morte, na qual o fungo foi isolado de hemocultura4.
Criptococose foi a micose sistêmica mais frequentemente identificada nos pacientes deste estudo e também a responsável pela maior proporção de óbitos. Esse achado já foi observado por diferentes autores que encontraram letalidade variando de 10%-73% e atestam que essa micose sistêmica é a causa mais comum de meningite grave em pacientes com AIDS, principalmente em países em desenvolvimento26 16 30.
Analisadas isoladamente, as características dos pacientes aqui estudados que se associaram ao óbito causado pela micose sistêmica foram o etilismo, a hipoalbuminemia, a insuficiência renal, a elevação da DHL e a carga viral do HIV. Seria de esperar uma associação inversa entre a contagem de linfócitos CD4+, demonstrativa do nível de imunodepressão do paciente, com a evolução fatal da micose. No entanto, essa associação não foi observada no estudo e pode ser explicada pela baixa contagem inicial e pequena variabilidade dessa contagem em toda a amostra de pacientes. Com exceção do hábito etílico, todas as variáveis laboratoriais associadas com o óbito são demonstrativas de fase avançada da doença no momento da admissão do paciente e, portanto, é esperado que se relacionem ao pior prognóstico da micose no paciente com HIV/Aids. De fato, após análise ajustada, apenas o nível sérico de DHL e o etilismo permaneceram independente associado ao óbito dos pacientes.
Embora estudo recente não tenha demonstrado impacto do abuso de álcool na mortalidade por HIV/Aids41, é sabido que o uso de drogas ilícitas e de álcool é importante modificador prognóstico de pacientes com essa infecção20 32 33. No entanto, é possível que a influência do alcoolismo na evolução fatal, aqui observada seja devida à associação com outras complicações do abuso do álcool no organismo, tais como esteato-hepatite alcoólica, cirrose hepática e câncer10 20, as quais não foram abordadas no desenho deste estudo. Outra dificuldade encontrada para explicar essa associação foi a não utilização de recurso mais preciso para mensurar a variável etilismo entre os pacientes estudados, o que pode ter resultado em erro classificatório e tendenciosidade na análise. Dessa forma, é fundamental prosseguir na investigação dessa relação entre etilismo e prognóstico das micoses sistêmicas no paciente com HIV/Aids, utilizando metodologia e ferramentas diagnósticas mais robustas.
Achado relevante foi a evidente e independente associação entre o nível sérico aumentado de DHL e o óbito causado pela micose sistêmica nos pacientes estudados. Esta enzima é encontrada em todas as células dos vertebrados, ocupando importante posição no metabolismo celular fora da via glicolítica. Funciona como enzima de ligação entre o metabolismo de proteínas e carboidratos e serve como indicadora de condições fisiológicas ou estruturais alteradas, desempenhando um papel importante em condições de estresse, tais como a inflamação, a hipóxia e/ou choque prolongados14 19. Outros autores também têm observado associação entre elevação da DHL e pior prognóstico de infecções fúngicas sistêmicas2 3 18 23 43. Possíveis explicações para a elevação da DHL em quadros infecciosos, micóticos ou não, associados à Aids são relacionadas à disfunção orgânica múltipla associada à disseminação do processo infeccioso23 e/ou à síndrome reativa hemofagocítica, que é consequente à ativação inapropriada de monócitos, presente nas infecções graves, principalmente em estágios avançados da Aids 7 9. Baseado nessa já conhecida associação, tem sido aventado que o nível da DHL pode ser útil no diagnóstico diferencial entre pneumocistose e histoplasmose, uma vez que o nível dessa enzima é geralmente maior que 600U/L na histoplasmose, diferente do encontrado em outros pacientes com HIV/Aids e infiltrado pulmonar 3 7 8.
Assim sendo, é plausível concluir que as infecções fúngicas sistêmicas representaram importante causa de infecção oportunista e morte entre os pacientes com HIV/Aids da região e que o etilismo e a elevação do nível sérico de DHL podem ser características clínico-laboratoriais preditoras de pior prognóstico e evolução letal dessas micoses.

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 Endereço para correspondência: Dr. Luciano Corrêa Ribeiro
Rua Modena 31, Bairro Jardim Itália
78060-808 Cuiabá,MT
e-mail: lucorrea@terra.com.br

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