sábado, 24 de maio de 2014

Avaliação pré-operatória: triagem por meio de questionário




Florentino Fernandes MendesI; Eduardo Lopes MachadoII; Maurício de OliveiraII; Fernando Rudem BrasilIII; Gibrahn EizerikIII; Patrick TelökenIV
IPhD, Professor Adjunto, Departamento de Cirurgia, Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Porto Alegre, RS, Brasil; Responsável pelo Centro de Ensino e Treinamento, Sociedade Brasileira de Anestesiologia, Porto Alegre, RS, Brasil
IIAnestesiologista, Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, RS, Brasil
IIIMédico Residente, UFCSPA, Porto Alegre, RS, Brasil
IVMD, Departamento de Cirurgia, Royal Perth Hospital, Perth, Austrália



RESUMO
JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: Antes de cirurgia eletiva é indispensável conhecer com antecedência as condições clínicas do paciente. O objetivo deste estudo foi comparar a avaliação pré-operatória (APO) por meio do preenchimento de um questionário com a consulta realizada pelo anestesiologista.
MÉTODO: Antes da consulta pré-operatória, os pacientes responderam a um questionário com informações sobre idade, peso, altura, cirurgia planejada, história médica e cirúrgica pregressa, alergias, medicamentos e doses usadas, história social (drogas ilícitas, álcool, tabagismo), capacidade funcional e tolerância ao exercício. A consulta pré-operatória foi realizada por anestesiologista que não tinha acesso aos dados do questionário nem conhecimento da pesquisa. Os dados obtidos por meio do questionário foram comparados com a consulta pré-operatória por dois pesquisadores independentes, com a finalidade de responder às perguntas: 1) A avaliação pelo questionário foi suficiente - o paciente poderia ser conduzido à cirurgia sem necessidade da avaliação presencial? 2) Houve alguma informação relevante - capaz de mudar a conduta anestésica - que o questionário não aferiu, mas que a consulta presencial avaliou? 3) Houve alguma informação acrescentada pelo questionário de saúde que a consulta presencial não obteve? Para análise estatística usou-se o teste t de Student pareado para dados paramétricos e o teste Qui-quadrado para dados categóricos com P < 0,05.
RESULTADOS: Dentre os 269 pacientes elegíveis houve uma recusa, quatro aceitaram participar mas não preencheram o questionário e houve 52 perdas, totalizando 212 participantes. O questionário acrescentou dados à consulta em 109 casos (51,4%). A triagem apenas pelo questionário foi suficiente - não necessitou de consulta presencial - em 144 pacientes (67,93%). A avaliação realizada pelo anestesiologista liberou para a cirurgia na primeira consulta em 178 oportunidades (84%). Na identificação dos casos de não liberação para cirurgia, o questionário apresentou valor preditivo negativo de 94,4%, valor preditivo positivo de 38,2%, sensibilidade de 76,5% e especificidade de 76,4%. Houve fatores clínicos estatisticamente significativos (P < 0,05) associados com não liberação para a cirurgia: idade acima de 65 anos, IMC > 30, baixa capacidade funcional, hipertensão arterial, diabetes mellitus, asma, insuficiência renal, hepatite e cardiopatia isquêmica.
CONCLUSÕES: O uso do questionário foi efetivo para triagem de pacientes que necessitam de avaliação complementar e/ou alteração de regime terapêutico previamente ao procedimento eletivo. Além disso, o questionário acrescentou dados não contemplados pela avaliação clínica.
Unitermos: AVALIAÇÃO, Pré-anestésica; ANESTESIOLOGIA, Consultório; Fatores de Risco; Questionários.



Introdução
A avaliação pré-operatória (APO) é realizada para assegurar conforto e segurança ao paciente e para melhorar o desempenho do centro cirúrgico1-3. É obrigatória antes de qualquer anestesia eletiva4-6, uma vez que é indispensável conhecer, com a devida antecedência, as condições clínicas do paciente7. Um estudo de incidentes intraoperatórios demonstrou que 11% dos incidentes graves ocorrem por causa da avaliação pré-operatória deficiente. Digno de nota, metade desses incidentes poderia ter sido evitada8.
O desconhecimento das condições clínicas dos pacientes é responsável pelo cancelamento de muitos procedimentos momentos antes do horário agendado, fato que gera custos desnecessários e inconveniência para médicos e pacientes. A estrutura organizacional de uma clínica de avaliação pré-operatória varia de acordo com a instituição hospitalar. Considerando que questões logísticas e econômicas podem impedir uma avaliação pré-operatória presencial e minuciosa, vários autores sustentam que uma avaliação efetiva pode ser facilitada pelo preenchimento de um questionário estruturado9,10. Esse serviria como instrumento de triagem para identificar pacientes com alto risco de desenvolver complicações perioperatórias e daria oportunidade ao encaminhamento desses pacientes para clínica de avaliação pré-operatória e/ou para consulta especializada10.
A identificação de condições que impõem risco e a busca da melhor condição clínica dos pacientes no pré-operatório reduzem a mortalidade e a morbidade pós-operatória4-6,8-10. Contudo, a feitura indiscriminada de testes diagnósticos pode ter consequências negativas11,12. Como exemplos, podemos citar aumento de custos do sistema de saúde, atraso nos procedimentos e, mais importante, exposição dos pacientes a riscos potenciais desnecessários. Esse conhecimento tem motivado a busca de um processo de avaliação mais eficiente, com minimização de custos, redução de testes complementares e melhora do cuidado de saúde10.
O presente estudo objetivou avaliar a efetividade do uso de um questionário para identificar pacientes de risco, que necessitam avaliação pré-operatória presencial, bem como identificar o perfil dos pacientes atendidos na nossa instituição.

Método
Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa e assinatura do Termo de Consentimento Informado, foram selecionados para participar do estudo todos os pacientes que fizeram a primeira consulta para APO no ambulatório de avaliação pré-operatória (APOA) do Serviço de Anestesia da Santa Casa de Porto Alegre (SASC) entre 1º de agosto a 1º de setembro de 2011. Antes da consulta pré-operatória, os pacientes, de forma voluntária, responderam a um questionário com informações sobre idade, peso, altura, cirurgia planejada, história médica e cirúrgica pregressa, alergias, medicamentos e doses usadas, história social (drogas ilícitas, álcool, tabagismo), capacidade funcional e tolerância ao exercício. A consulta pré-operatória foi realizada por anestesiologista, que não tinha acesso aos dados do questionário nem conhecimento da pesquisa. Os dados obtidos por meio do questionário foram comparados com a consulta pré-operatória por dois pesquisadores independentes, com a finalidade de responder às perguntas: 1) A avaliação por meio do questionário foi suficiente - o paciente poderia ser conduzido a cirurgia sem necessidade da avaliação presencial? 2) Houve alguma informação relevante - capaz de mudar a conduta anestésica - que o questionário não aferiu e que a consulta presencial avaliou? 3) Houve alguma informação acrescentada pelo questionário de saúde que a consulta presencial não obteve? Nos casos de discordância entre os avaliadores na resposta das perguntas, um terceiro pesquisador foi chamado para opinar e a decisão foi tomada por consenso.
Os dados foram armazenados no programa Access e analisados com o uso do pacote estatístico SPSS v.18.0 (SPSS Inc., Chicago, USA). As variáveis categóricas são descritas pelas frequências absoluta e relativa e associadas pelo teste de qui-quadrado com correção de Yates ou teste Exato de Fisher quando indicado. As variáveis quantitativas são descritas pela média e pelo desvio padrão e comparadas por meio do teste t de Student pareado. As medidas de desempenho dos testes foram calculadas com o seu respectivo intervalo de confiança de 95%. Foi considerado um nível de significância de 5%.

Resultados
Durante o período de coleta foram realizadas 315 consultas no APOA e 46 delas não satisfizeram critérios de inclusão. Entre as 269 elegíveis ocorreu uma recusa, quatro aceitaram participar mas não preencheram o questionário e houve 52 perdas por falha na coleta dos dados, totalizando 212 participantes. Os dados antropométricos, as principais comorbidades e a liberação durante a consulta presencial são apresentados nasTabelas 1 e 2.


O questionário acrescentou dados à consulta em 109 casos (51,4%). Foi obtido algum dado relevante - capaz de mudar a conduta anestésica - por meio da consulta que não foi avaliado por intermédio do questionário em 22 casos (10,4%). A triagem apenas pelo questionário foi suficiente - não necessitando de consulta presencial - em 144 pacientes (67,93%).
O APOA liberou para cirurgia na primeira consulta em 178 oportunidades (84%). Para identificar os casos de não liberação para cirurgia pelo APOA, o questionário de saúde apresentou valor preditivo negativo de 94,44% (136/144), valor preditivo positivo de 38,23% (26/68), sensibilidade de 76,47% (26/34) e especificidade de 76,40% (136/178) (Tabela 3).
Durante a consulta realizada pelo anestesiologista, houve fatores clínicos estatisticamente significantes associados com a não liberação para a cirurgia (P < 0,05): pacientes com mais de 65 anos, IMC > 30, baixa capacidade funcional, hipertensão arterial, diabetes mellitus, asma, insuficiência renal, hepatite e cardiopatia isquêmica.

Discussão
O questionário deste estudo, usado como método de triagem, foi suficientemente consistente para determinar quais pacientes necessitavam de avaliação presencial. Além disso, na metade dos casos o questionário acrescentou informação adicional à obtida pela avaliação presencial.
Durante a avaliação pré-operatória a maioria dos diagnósticos é feita com base na história e no exame físico13. Visando a aumentar a segurança e o conforto para médicos e pacientes, sem causar aumento significativo nos custos ou nas dificuldades logísticas, instituímos um questionário de triagem. O questionário apresentou valor preditivo negativo elevado (94,4%), o que o torna um método confiável para identificar em quais pacientes a consulta presencial pode ser dispensada, característica ideal para um teste de triagem. Desse modo, podemos triar com segurança os pacientes à distância e evitar deslocamentos desnecessários e dispendiosos, já que 60% da nossa amostra residem em outras cidades.
O uso da tecnologia da informação é uma ferramenta útil e pode ser empregada para coleta de informações e avaliação pré-operatória, considerando que muitos candidatos à cirurgia são relativamente saudáveis e não requerem avaliação completa em uma clínica de avaliação pré-operatória14.
Digner descreveu uma avaliação pré-operatória por telefone para pacientes candidatos a cirurgia ambulatorial e demonstrou que essa permitiu não somente a seleção e o preparo de pacientes para procedimentos ambulatoriais, mas também reduziu o numero de idas ao hospital e o tempo de internação15. Estudo similar foi realizado em pacientes estado físico ASA I e II submetidos à cirurgia ambulatorial de mama16.
Existe aumento de solicitações dos serviços prestados pelos anestesiologistas e uma necessidade clara de reavaliação e adequação desses serviços para poder suprir a demanda. A prioridade inicial deve ser o desenvolvimento de um mecanismo eficiente para obtenção de informações do paciente antes da cirurgia, sem que seja necessária a visita ao hospital ou centro de avaliação e dessa forma poder direcionar os recursos humanos para áreas onde são mais necessários10.
É importante destacar que a APO com uso de um questionário de saúde autoaplicável exige correta leitura, compreensão e preenchimento pelo paciente. Alguns pacientes poderiam ter dificuldade para preencher o questionário, ou fazê-lo de forma incompleta, principalmente aqueles com dificuldade visual e/ou baixa escolaridade. De fato, em nosso trabalho houve quatro pacientes que aceitaram participar do estudo e não preencheram o questionário, talvez por alguma dificuldade de compreensão, principalmente quando consideramos que a escolaridade média dos pacientes foi de 7,08 anos. A média encontrada situa-se próximo da média brasileira, que foi estimada pelo IBGE em 7,2 anos, e não parece ter influenciado a qualidade das respostas17. É importante destacar que entre os 212 casos somente oito pacientes não liberados pela consulta presencial não foram identificados pelo questionário - falha na triagem. Quatro por falta de exames complementares, três por falta de condições clínicas e um por problemas administrativos.
A ausência do exame físico feito com antecedência pelo anestesiologista é uma limitação da APO por métodos não presenciais. A avaliação da via aérea é questão relevante antes de qualquer anestesia, porém não precisa ser feita com muita antecedência. Os anestesiologistas estão preparados para avaliar e manejar a via aérea em um intervalo muito curto de tempo. Dessa forma, um plano prolongado nem sempre é necessário, desde que sejam fornecidos com agilidade os instrumentos de manejo de via aérea difícil10.
Outra limitação deste estudo é o curto período de coleta dos dados, que pode sofrer o efeito de variações sazonais na apresentação ou agudização de comorbidades.
O uso de um questionário para APO é considerado teste de triagem e deve apresentar elevado valor preditivo negativo e alta sensibilidade. Apesar do elevado valor preditivo negativo (94,4%) encontrado, a sensibilidade (76,5%) precisa melhorar. Portanto, além de explorar outros fatores de risco e história familiar de procedimentos cirúrgicos, o questionário deverá sofrer alterações com o objetivo de aumentar a sensibilidade.
Sandberg e col. notaram que sem uma comunicação efetiva o paciente pode não compreender o diagnóstico, entender o tratamento proposto ou efetivamente considerar as opções que são apresentadas18. Foi demonstrado aumento da satisfação com a melhora da comunicação proporcionada pela clínica de avaliação pré-operatória19,20. Futuras clínicas deverão focar em novos métodos para se comunicar e educar o paciente.
Em suma, o uso de questionário parece ser eficaz na identificação de pacientes que necessitam de avaliação mais detalhada. A implementação desse tipo de sistema permite que a avaliação pré-operatória seja individualizada de acordo com as necessidades do paciente, sem aumento desnecessário de custos causado pela avaliação presencial de rotina realizada em consultório, e, mais importante, permite que situações de risco e/ou que requeiram manejo sejam conhecidas com a devida antecedência.

Referências
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 Correspondência para:
Florentino Fernandes Mendes
Departamento de Cirurgia Clínica
Rua Osmar Amaro de Freitas, 200
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. CEP: 91210-130
E-mail: men.men@terra.com.br
Submetido em 8 de maio de 2012.
Aprovado para publicação em 20 de julho de 2012.


Recebido da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.


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